EXAME
DE ORDEM E EXAME DE ESTADO
Fernando
Lima
Professor
de Direito Constitucional
30.12.2010
O art. 8º da Lei 8.906/1.994
(Estatuto da OAB) exigiu, dentre os requisitos necessários
para a inscrição do advogado nos quadros
da Ordem, e consequentemente para que o bacharel em direito seja
autorizado a exercer a sua profissão liberal, a “aprovação em exame
de ordem” (inciso IV). O Estatuto da OAB não definiu o que
seria esse exame, mas disse,
no §1º desse mesmo artigo, que ele
seria regulamentado em provimento do Conselho Federal da OAB.
O Conselho Federal da OAB, efetivamente, “regulamentou” o exame de ordem, através do Provimento nº 81/1.996, que disse apenas que
a aprovação nesse exame seria
obrigatória para a admissão no quadro de advogados e disse que ele seria
aplicado em duas fases, etc.
Ressalte-se, desde logo, que não cabe
ao Conselho Federal da OAB a tarefa de regulamentar as leis. O poder regulamentar, ou seja, a tarefa de “regulamentar as leis para a sua fiel execução”,
de acordo com o art. 84 da Constituição Federal, inciso IV, compete privativamente
ao Presidente da República. Esse
provimento da OAB é, portanto, inconstitucional, como os outros que o seguiram,
ou seja, o provimento nº 109/2.005 e o provimento
nº 136/2.009.
Das declarações dos dirigentes da OAB, no entanto, é possível deduzir que o exame
de ordem é um instrumento
de avaliação da qualificação profissional do bacharel em direito,
o que faz com que esse exame
seja, novamente, inconstitucional, porque usurpa a competência do poder público para
essa avaliação, prevista na Constituição
Federal e disciplinada na
Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (Lei 9.394/1.996). O art. 205
da Constituição diz que o ensino qualifica para o trabalho. O
art. 43 da LDB diz que a educação
superior tem por finalidade
formar diplomados nas
diferentes áreas de conhecimento, aptos
para a inserção em setores profissionais. O art. 48 da LDB diz que os diplomas de cursos superiores
reconhecidos, quando registrados, terão validade nacional como prova da formação
recebida por seu titular. O art. 209 da Constituição Federal diz que compete ao poder público avaliar o ensino.
Não resta dúvida, portanto, de que o exame de ordem, ou exame da OAB, é
novamente inconstitucional, inconstitucionalidade esta material, porque ele
conflita diretamente com as normas constitucionais que atribuem ao poder público a competência para a avaliação do ensino e para o
registro dos diplomas dos cursos superiores por ele autorizados e reconhecidos,
através do MEC, evidentemente.
Se os diplomas de cursos superiores reconhecidos,
quando registrados, terão validade nacional como prova da formação recebida por
seu titular, como seria possível que somente o diploma do bacharel em direito
não tivesse nenhuma validade, para a sua inscrição nos quadros da OAB?
O exame de ordem é, portanto, um exame
inconstitucional, porque é feito por um órgão de classe, ou seja, por uma
corporação profissional, cuja competência se limita, ou deveria ser limitada, à
fiscalização do exercício profissional, e não à avaliação do conhecimento
acadêmico, que já foi avaliado pela instituição de ensino superior, e que já
foi comprovado através de um diploma, devidamente registrado pelo MEC.
Mas além da inconstitucionalidade formal, a tal
regulamentação da Lei 8.906 pelo Conselho Federal da OAB, e da
inconstitucionalidade material, ou seja, a usurpação da competência
constitucional do MEC por esse exame, existe ainda uma
terceira inconstitucionalidade: o desrespeito ao princípio da isonomia, porque
somente os bacharéis em direito, e apenas os que se inscreveram depois de 1.996,
são obrigados a se submeterem a um exame desse tipo.
Apenas os bacharéis em direito, mas com a exceção,
agora, para os contabilistas, porque a Lei nº 12.249/2.010, que trata de
inúmeros assuntos, alterou, em seu art. 76, diversos artigos do Decreto-lei nº 9.295/1.946, para instituir, em seu art. 12,
o “exame de suficiência”, tão inconstitucional quanto o da OAB, pelo fato de
que usurpa a competência do MEC e também porque foi regulamentado pelo Conselho
Federal de Contabilidade e não pelo Presidente da República.
Para que cesse o desrespeito ao princípio da isonomia,
portanto, basta que o Congresso Nacional autorize o exame para todos os
conselhos profissionais. De qualquer maneira, esses exames continuariam sendo
inconstitucionais, porque usurpam a competência do poder público.
Qual seria a solução, então? O exame de estado, para
todas as profissões, é claro.
Mas o que é um exame de estado? O exame de estado
seria o exame feito pelo poder público, dentro da sua competência de fiscalizar
e avaliar o ensino e as instituições de ensino superior, que formam
profissionais aptos para o exercício das profissões liberais que exigem uma
qualificação específica.
O Exame de Estado, ou seja, um exame feito pelo MEC,
de preferência, lógicamente, antes da diplomação do
bacharel, seria constitucional, mas o Exame de Ordem, feito por um órgão de
classe, e que pode ser utilizado como instrumento de reserva de mercado, é claramente
inconstitucional, por todas as razões já apontadas.
A regra, de acordo com a nossa Constituição, é a
liberdade de exercício profissional – cláusula pétrea, aliás -, consagrada no
inciso XIII de seu art. 5º. Assim, todos são livres para o trabalho e para o
exercício de uma profissão liberal.
Para algumas profissões, que podemos chamar de “não
regulamentadas”, como a de pedreiro, a de encanador, a de técnico de TV, e
tantas outras, não existem restrições referentes à qualificação profissional.
Mas para as profissões regulamentadas, em atenção ao disposto no já referido
inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal, a lei exige um diploma de uma
instituição de ensino superior, ou seja, uma determinada qualificação
profissional. Essa restrição, criada em lei, deve ser, contudo, razoável, e
tendo sempre em vista o interesse público, sob pena de se tornar
inconstitucional, porque a regra constitucional, conforme já observado, é a da
liberdade de exercício profissional, que nem mesmo uma emenda constitucional
poderia ser tendente a abolir, simplesmente tendente a abolir, porque essa
liberdade é um dos direitos e garantias fundamentais, consagrados pelo art. 5º
da Constituição e resguardados como cláusula pétrea pelo § 4º de seu art. 60.
Concluído o curso exigido por lei, em uma instituição
de ensino superior, portanto, o acadêmico estará devidamente qualificado para o
exercício de sua profissão liberal e essa qualificação será atestada através de
um diploma, reconhecido pelo MEC. Bastará, então, que o bacharel se inscreva em
seu órgão de classe, que terá a competência, apenas, de fiscalizar o exercício
profissional, mas não a competência de avaliar, novamente, a qualificação
profissional do bacharel portador desse diploma, como querem
os defensores do exame de ordem.
O Jus Navigandi publicou, no
último dia 28, mais um artigo que defende esse exame, assinado este pelo
advogado Luiz Cesar Barbosa Lopes, que é também professor da Unieuro: Exame
da OAB: Uma necessidade para a sociedade.
Nesse artigo, o Dr. Luiz Cesar repete os mesmos
argumentos de sempre, ou seja:
1) o de que o exame é necessário para proteger a sociedade
contra os maus profissionais. Eu só não consigo entender como um professor de
direito pode confessar que contribuiu para aprovar um acadêmico que não possui
o mínimo necessário de conhecimento jurídico e que, por essa razão, o exame de
ordem é necessário para proteger a sociedade contra os maus profissionais. Por
que será que ele não reprovou, desde logo, esses possíveis maus profissionais? O
Correio Braziliense noticiou, recentemente, (VEJA AQUI) que a Unieuro ocupa uma
das últimas posições no ranking dos cursos de Direito no Distrito Federal,
tendo aprovado apenas 10,53% dos candidatos inscritos. Assim, de um total de
750 candidatos, apenas 79 foram aprovados no exame de ordem. Por que será que
esses 671 bacharéis diplomados pela Unieuro foram
aprovados por todos os seus professores, inclusive pelo Dr. Luiz Cesar, em
todas as matérias, durante os cinco anos do curso, em inúmeras provas e no
Trabalho de Conclusão do Curso, defendido perante uma Banca, e depois o exame
da OAB constatou que eles não possuem o mínimo necessário do conhecimento
acadêmico exigido para o exercício da advocacia? Não seria melhor fechar todas
as faculdades e deixar que a OAB, através de suas Escolas Superiores da
Advocacia, assuma a responsabilidade de formar os futuros advogados?
2) o curso de direito não forma advogados, forma apenas
bacharéis, que não terão nenhuma profissão liberal. Essa afirmação contradiz,
evidentemente, a Constituição Federal. E o bacharel em direito seria o único, assim,
que não tem nenhuma profissão. Será que as faculdades antigas eram faculdades
de advocacia, e por essa razão não existia o exame de ordem? E quando foi,
exatamente, que as faculdades deixaram de ser faculdades de advocacia?
Mas o Dr. Luiz Cesar disse, ainda, que “o exame da OAB precisa ser aprimorado,
talvez para chegar ao nível de excelência dos exames aplicados nos Estados
Unidos da América, onde não se exige um, mas vários exames para fins de avaliar
a aptidão dos candidatos para o exercício da advocacia (ex: Bar examination; Multistate Bar Exam; Multistate Essay Exam; Multistate
Performance Test, etc.), mas
a abolição do exame da OAB só surge como voz daqueles que encaram a advocacia
como uma profissão qualquer onde ganhar ou tentar ganhar dinheiro é o objetivo
principal e a sociedade que se “exploda”...”
A conclusão de que somente desejam a abolição do exame
aqueles que encaram a advocacia como uma profissão de mercenários é deplorável.
Não entendo, também, como
um professor de direito pode pretender desqualificar dessa maneira quem pensa
de forma diferente e como é possível que ele, tendo sido aprovado no exame de
ordem, não consiga entender que uma norma inconstitucional não pode ser
defendida, simplesmente, como necessária.
Mas o Dr. Luiz Cesar desconhece, pelo que se depreende
do trecho acima transcrito, o que seja um exame de estado, porque muitos desses
exames, nos Estados Unidos, são aplicados pelo poder público. A National Conference of Bar Examiners é uma corporação
de fins não lucrativos, fundada em 1.931. Neste link, http://www.ncbex.org/bar-admissions/offices/, é possível encontrar os endereços de todos
esses órgãos, encarregados da realização dos exames, nos diversos estados.
Em outras palavras: nos Estados Unidos, o exame não é
da ABA (American Bar Association),
mas é principalmente controlado pelo Estado, ou seja, pelo poder público.
Deve ser ressaltado, contudo, que mesmo que outros
países adotassem um exame de ordem semelhante ao nosso, feito por uma
corporação profissional, para rasgar diplomas já registrados pelo poder
público, isso não seria argumento jurídico para a defesa de sua
constitucionalidade. É evidente que não se pode alegar, por exemplo, que alguns
estados americanos adotam a pena de morte, para defender a sua
constitucionalidade no Brasil.
A Itália também adota o Exame de Estado, para todas as
profissões, como pode ser observado nestes links,
das universidades que realizam alguns desses exames: Universidade de Roma, Universidade de Messina, e Universidade de Bolonha.
Mas o Dr. Luiz Cesar aproveitou, também, para criticar
a decisão recente do Desembargador do TRF/5ª, que ele chama de Sr. Vladimir
Souza Carvalho e para afirmar: “O presidente da OAB, Ophir Cavalcante, saiu prontamente em defesa do exame,
tendo explanado que o exame visa, primordialmente, a proteção da sociedade. O
que não mereceu tanta importância da imprensa foi o fato de que o filho do
Desembargador Federal contrário ao exame da OAB já fora reprovado quatro vezes
no exame, fato este que só demonstra o absurdo casuísmo de que se revestiu a
atuação do nobre magistrado, exteriorizando, ainda, a flagrante ilegalidade e
inconstitucionalidade presentes numa decisão que amparou a pretensão de poucos
em detrimento da segurança de toda a sociedade.”
Cabem
aqui, certamente, algumas considerações e algumas indagações:
1) esse fato,
referente ao filho do desembargador, mereceu, sim, enorme importância na imprensa.
As declarações do Dr. Ophir, que foram muito
criticadas, pelo desrespeito em relação a esse magistrado, estão publicadas em
inúmeros jornais e páginas na internet. A própria página oficial da OAB Piauí
publicou a notícia: (VEJA AQUI)
O Dr. Ophir declarou, entre outras coisas, que: "Seu filho [do desembargador]
já fez exames de Ordem e não passou.
Então, ao liberar as pessoas alegando inconstitucionalidade do
exame de uma forma indireta, ele vai
beneficiar o filho se essa tese vier
a ser vitoriosa. Portanto,
é com essa perspectiva que a Ordem
entende que existe um critério ético a ser observado".
Na minha opinião, o Desembargador não
feriu qualquer preceito ético. Ao contrário, foi o Dr. Ophir
quem absurdamente descumpriu o próprio Provimento nº 136/2.009, do Conselho
Federal da OAB, cujo art. 18 determina: “A divulgação dos resultados das provas do Exame de Ordem será efetuada
após homologação pela Coordenação Nacional de Exame de Ordem, vedada a divulgação dos nomes dos examinados não aprovados.”
Aliás, essa proibição da divulgação dos nomes dos
examinados não aprovados já existia nos provimentos anteriores: art. 7º § 1º do
Provimento nº 81/1.996 e art. 7º § 1º, também, do Provimento nº 109/2.005.
2) Pode o
Presidente da OAB descumprir um
Provimento aprovado pelo seu Conselho Federal? O que seria mais grave?
Descumprir esse provimento, ou descumprir a Constituição Federal? Se for
necessário, a Constituição e o Provimento podem ser descumpridos?
3) A partir
de agora, prevalecendo essa tese jurídica, de que um magistrado se torna
suspeito para decidir a respeito do exame de ordem pelo fato de que o seu filho
foi reprovado nesse exame, vamos iniciar uma pesquisa rigorosa a respeito dos
Ministros do Supremo Tribunal Federal, que em breve deverão julgar o recurso
extraordinário nº 603583-RS, que já teve
a sua repercussão geral decidida pelo Plenário Virtual, em 11.12.2.009.
Quem sabe os dirigentes da OAB não pretendem alegar
a suspeição de alguns Ministros do Supremo, cujos filhos, netos,
ou sobrinhos tenham sido reprovados
no Exame de Ordem?
Será que
os dirigentes da OAB pretendem alegar a suspeição de alguns desses Ministros,
por esse mesmo motivo, desde
logo, para derrubar essa decisão, da
repercussão geral?
Afinal, se a repercussão
geral fosse negada, o recurso extraordinário seria arquivado.
E, pensando bem, para que serve a nossa Constituição,
se ela pode ser descumprida, com tanta facilidade?
Será que ela serve apenas para que os professores de
Direito Constitucional enganem os seus alunos, para que eles pensem que
existem, realmente, os direitos fundamentais, dentre eles o direito de livre
exercício profissional, e que o mandado de segurança é um remédio
constitucional que serve para que o Judiciário garanta o efetivo exercício
desses direitos? Será que a Constituição serve apenas para que as questões dos
concursos públicos e do exame de ordem cobrem dos candidatos esse conhecimento
inútil, destinado apenas a selecionar aqueles que melhor acreditarem e cegamente
decorarem esses dogmas constitucionais??
Será que a Constituição serve apenas para que o
Conselho Federal da OAB possa ingressar perante o Supremo Tribunal Federal,
sempre que lhe aprouver, com Ações Diretas de Inconstitucionalidade, alegando o
seu descumprimento e para que o Conselho Federal da OAB mantenha uma Comissão
Nacional de Estudos Constitucionais que, até a presente data, ainda não
conseguiu responder ao meu questionamento, referente à inconstitucionalidade
dos convênios de assistência judiciária da OAB, encaminhado ao seu Conselho
Federal em novembro de 2.007? (VEJA AQUI)