Fernando Machado da Silva Lima
Sob o título “Detran confirma atualização do valor das multas”, O LIBERAL noticiou, em sua edição do dia 10 de fevereiro corrente, que o Diretor do Departamento Estadual de Trânsito pretende atualizar os valores das multas aplicadas antes da implantação do Código de Trânsito Brasileiro, sob a alegação de que pretende prevenir que os motoristas punidos venham a cometer novos delitos.
A pretensão é tão absurda que nos sentimos
obrigados a contestar sua possibilidade, porque repugnante aos princípios
jurídicos, bem como à imagem do Governo e de um Estado - o Brasil -, que se
pretende democrático e no qual, conseqüentemente, deve prevalecer a vontade da
lei, decorrente da vontade popular, expressa através de seus representantes e
nunca o poder discricionário de quem quer que seja.
O Estado democrático, ou Estado de Direito,
pressupõe o respeito a determinados princípios basilares, como o da legalidade
e o da irretroatividade das leis, que procuraremos expor sucintamente, a
seguir, para provar que o Ilmo. Sr.
Diretor do Detran não poderá aplicar as disposições do novo Código às infrações
ocorridas antes de sua vigência. Sabemos que essa autoridade já “prevê reações
contrárias à sua medida, mas está preparado para enfrentá-las”, conforme consta
da referida notícia, mas preferimos correr o risco, a deixar sem defesa nossa consciência
jurídica.
O novo Código é uma Lei Federal (Lei no. 9.503, de
23.09.97), aprovada pelo Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República, o que significa que milhões de brasileiros participaram, através do
voto, pela eleição de seus representantes, embora indiretamente, na própria
elaboração dessa Lei, tudo em consonância com o disposto na Constituição
Federal, que consagra o princípio de que “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.(art. 5o,
II)
O art. 340 do novo Código de Trânsito, aprovado
pelo Congresso e pelo Presidente, determina: “Este Código entra em vigor
cento e vinte dias após a data de sua publicação”, o que significa que suas
normas somente poderiam ser aplicadas a partir desse dia, nem antes nem depois.
Aliás, todos recordamos que o próprio Presidente da República declarou que o
Código deveria ser aplicado imediatamente, no mesmo dia previsto para sua
entrada em vigor, sem qualquer dilação, como desejavam algumas autoridades.
Essa determinação presidencial é consectário
natural do princípio da legalidade, acima referido, que se apresenta sob dois
ângulos diversos, em relação ao jurisdicionado e em relação à autoridade. Para
o jurisdicionado, no caso o motorista infrator, somente a existência da lei
poderia obrigá-lo a fazer alguma coisa, na hipótese, o pagamento da multa. Para a autoridade, no entanto, a existência
da lei é requisito indispensável para que ela possa exigir, multar, prender, e
até matar, onde a pena de morte é aceita. Mas se a lei existe, e já está em
vigor, a autoridade é obrigada a aplicá-la. Em diversos artigos, o novo Código
de Trânsito se refere, como não poderia deixar de ser, aliás, à competência dos
órgãos ou entidades executivos de trânsito para cumprir e fazer cumprir a
legislação e as normas de trânsito...
Assim, não basta que a Lei tenha sido aprovada
pelos órgãos competentes e que não conflite com a Lei Fundamental, a
Constituição, mas é também necessário que ela esteja em vigor, para que possa
ser aplicada.
No tocante ao presente debate, o das infrações de
trânsito, seria evidentemente inadmissível, em nosso ordenamento jurídico, a
retroatividade da lei, para que fosse aplicada multa mais grave em relação a
fato ocorrido anteriormente à sua entrada em vigor, agindo a autoridade com
excesso de exação e fazendo dos poderes concedidos pela lei uso contrário ao
prescrito, substituindo pelo próprio e ilimitado arbítrio as normas legais
vigentes.
Trata-se, aqui, do outro princípio fundamental, do qual
desejávamos falar, o da irretroatividade da lei, consagrado também em nossa
Constituição, de modo a garantir a segurança jurídica, não podendo a lei
posterior atingir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido ou a coisa
julgada.
Acreditamos, assim, que os excessos por parte das autoridades, compreensíveis pelo desejo de solucionar os inúmeros e graves problemas decorrentes do desrespeito às normas do trânsito, serão certamente prejudiciais, haja vista que o respeito à lei deve começar pela própria autoridade - cumprir e fazer cumprir as normas de trânsito, conforme dito acima.
Para finalizar, não resistimos à tentação de, com
certo humor, enquadrar o Sr. Diretor no art. 161 do CTB: “Constitui infração
de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código “, no caso a
norma do art. 340, que estabelece o início de sua vigência, embora com a atenuante de que, até o momento, a
infração não se consumou, tendo havido apenas a ameaça.
Esperamos, apenas, não ser enquadrados no art. 195: “Desobedecer às ordens emanadas da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes”, o que constitui infração grave.
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