TRÂNSITO E LEGALIDADE

  Fernando Machado da Silva Lima

   Fevereiro de 1998

 

                                                       

                  Sob o título “Detran confirma atualização do valor das multas”, O LIBERAL noticiou, em sua edição do dia 10 de fevereiro corrente, que o Diretor do Departamento Estadual de Trânsito pretende atualizar os valores das multas aplicadas antes da implantação do Código de Trânsito Brasileiro, sob a alegação de que pretende prevenir que os motoristas punidos venham a cometer novos delitos.

 

                  A pretensão é tão absurda que nos sentimos obrigados a contestar sua possibilidade, porque repugnante aos princípios jurídicos, bem como à imagem do Governo e de um Estado - o Brasil -, que se pretende democrático e no qual, conseqüentemente, deve prevalecer a vontade da lei, decorrente da vontade popular, expressa através de seus representantes e nunca o poder discricionário de quem quer que seja. 

   

                 O Estado democrático, ou Estado de Direito, pressupõe o respeito a determinados princípios basilares, como o da legalidade e o da irretroatividade das leis, que procuraremos expor sucintamente, a seguir, para provar  que o Ilmo. Sr. Diretor do Detran não poderá aplicar as disposições do novo Código às infrações ocorridas antes de sua vigência. Sabemos que essa autoridade já “prevê reações contrárias à sua medida, mas está preparado para enfrentá-las”, conforme consta da referida notícia, mas preferimos correr o risco, a deixar sem defesa nossa consciência jurídica.  

 

                 O novo Código é uma Lei Federal (Lei no. 9.503, de 23.09.97), aprovada pelo Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, o que significa que milhões de brasileiros participaram, através do voto, pela eleição de seus representantes, embora indiretamente, na própria elaboração dessa Lei, tudo em consonância com o disposto na Constituição Federal, que consagra o princípio de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.(art. 5o, II)

 

                 O art. 340 do novo Código de Trânsito, aprovado pelo Congresso e pelo Presidente, determina: “Este Código entra em vigor cento e vinte dias após a data de sua publicação”, o que significa que suas normas somente poderiam ser aplicadas a partir desse dia, nem antes nem depois. Aliás, todos recordamos que o próprio Presidente da República declarou que o Código deveria ser aplicado imediatamente, no mesmo dia previsto para sua entrada em vigor, sem qualquer dilação, como desejavam algumas autoridades.

 

                  Essa determinação presidencial é consectário natural do princípio da legalidade, acima referido, que se apresenta sob dois ângulos diversos, em relação ao jurisdicionado e em relação à autoridade. Para o jurisdicionado, no caso o motorista infrator, somente a existência da lei poderia obrigá-lo a fazer alguma coisa, na hipótese, o pagamento da multa.  Para a autoridade, no entanto, a existência da lei é requisito indispensável para que ela possa exigir, multar, prender, e até matar, onde a pena de morte é aceita. Mas se a lei existe, e já está em vigor, a autoridade é obrigada a aplicá-la. Em diversos artigos, o novo Código de Trânsito se refere, como não poderia deixar de ser, aliás, à competência dos órgãos ou entidades executivos de trânsito para cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito...                    

                                    

                 Assim, não basta que a Lei tenha sido aprovada pelos órgãos competentes e que não conflite com a Lei Fundamental, a Constituição, mas é também necessário que ela esteja em vigor, para que possa ser aplicada.

 

                 No tocante ao presente debate, o das infrações de trânsito, seria evidentemente inadmissível, em nosso ordenamento jurídico, a retroatividade da lei, para que fosse aplicada multa mais grave em relação a fato ocorrido anteriormente à sua entrada em vigor, agindo a autoridade com excesso de exação e fazendo dos poderes concedidos pela lei uso contrário ao prescrito, substituindo pelo próprio e ilimitado arbítrio as normas legais vigentes.

 

               Trata-se, aqui, do outro princípio fundamental, do qual desejávamos falar, o da irretroatividade da lei, consagrado também em nossa Constituição, de modo a garantir a segurança jurídica, não podendo a lei posterior atingir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido ou a coisa julgada. 

                          

                 Acreditamos, assim, que os excessos por parte das autoridades, compreensíveis pelo desejo de solucionar os inúmeros e graves problemas decorrentes do desrespeito às normas do trânsito, serão certamente prejudiciais, haja vista que o respeito à lei deve começar pela própria autoridade - cumprir e fazer cumprir as normas de trânsito, conforme dito acima.

 

                  Para finalizar, não resistimos à tentação de, com certo humor, enquadrar o Sr. Diretor no art. 161 do CTB: “Constitui infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código “, no caso a norma do art. 340, que estabelece o início de sua  vigência, embora com a atenuante de que, até o momento, a infração não se consumou, tendo havido apenas a ameaça.

 

                 Esperamos, apenas, não ser enquadrados no art. 195: “Desobedecer às ordens emanadas da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes”, o que constitui infração grave.

 

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