Fernando Machado da Silva Lima
03.08.2000
Não há dúvida de que os governantes
brasileiros, sejam eles federais, estaduais ou municipais, merecem ser bem
remunerados, quer pela responsabilidade das elevadas funções que exercem, quer
pela importância de seu desempenho na vida de todos nós, que os elegemos, e que
somos também obrigados a pagar os tributos criados pelo Governo, adquirindo,
conseqüentemente, o direito de exigir, do Estado, a correspondente
contraprestação.
Não denotam um mínimo de inteligência, porém, o reajuste dos
próprios subsídios, pelos órgãos legislativos, nem a auto-concessão de
vantagens, pelo Judiciário, porque ao mesmo tempo em que atentam contra o
princípio constitucional da moralidade (art. 37, ‘caput’), deixam no cidadão e
no contribuinte a impressão de que o governante legisla e decide apenas em
causa própria. Essa atitude, que vem se agravando nos últimos tempos, culminou
com a aprovação da Emenda Constitucional nº 19/98, que retirou de alguns dispositivos
constitucionais a cláusula ‘para
vigorar na legislatura seguinte’, em decorrência da qual
os subsídios eram fixados ao término da legislatura, de modo que os
parlamentares aprovassem os subsídios de quem ainda seria eleito, evitando-se
dessa maneira a decisão em causa própria.
Assim,
com a nova redação do § 2o do art. 27; do § 2o do art.
28; dos incisos V e VI do art. 29; e dos incisos VII e VIII do art. 49, tendo
sido retirada do texto constitucional essa cláusula moralizadora, poderão ser alterados a qualquer momento,
pelos seus próprios beneficiários, legislando em causa própria, os subsídios
dos Deputados Federais, dos Senadores, do Presidente, do Vice-Presidente, dos
Ministros de Estado, no plano federal; dos Deputados Estaduais, do Governador,
do Vice-Governador e dos Secretários de Estado, no plano estadual; e dos
Vereadores, do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais, no
plano municipal.
Ao
mesmo tempo, a Emenda Constitucional n° 19/98 estabeleceu o subsídio único
(art. 37, XI e art. 39 § 4o), destinado a eliminar todos os
acréscimos pagos nos três Poderes e nas esferas federal, estadual e municipal,
e cujo teto seria o dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
A idéia
do subsídio único seria realmente louvável, porque decretaria o fim dos
“marajás”, que acumulam gratificações, adicionais, abonos, e outras
remunerações, porém para a fixação desse subsídio único, ou teto, que deveria
ser feita por lei federal, o que até hoje não ocorreu, foi estabelecida no art.
48, XV, da Constituição, a exdrúxula figura da iniciativa conjunta dos
Presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo, que atenta contra
a cláusula pétrea da independência dos Poderes (art. 2o e art. 60, §
4o, III). Exatamente em
decorrência desse princípio fundamental imutável, é que a Constituição
estabelecia, ou estabelece, porque a emenda é inconstitucional, a competência
privativa do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e dos Tribunais
de Justiça, para a apresentação de
projetos referentes à criação e à extinção de cargos e à remuneração dos seus
serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como à fixação
do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores
(art. 96, II, ‘b’). A Emenda acrescentou a essa norma uma observação: “ressalvado
o disposto no art. 48, XV”. Ou seja: na realidade, por essa Emenda,
deixaria de existir a competência privativa dos Tribunais para a apresentação
da proposta, porque a competência passaria a ser conjunta, dos quatro
Presidentes. Isso é francamente inconstitucional, porque a independência dos
poderes é cláusula pétrea. A respeito, o professor Paulo Modesto publicou no
Jus Navigandi (http://www.jus.com.br) um ótimo trabalho: “Teto Constitucional
de Remuneração: Impasse Artificial”.
De
qualquer maneira, apesar do impasse que já se vem arrastando por mais de dois
anos, porque não existe um consenso para a fixação do teto, deveria ser
respeitada a norma do art. 29 da Emenda, que determina que “os subsídios,
vencimentos, remuneração, proventos da aposentadoria e pensões e quaisquer
outras espécies remuneratórias adequar-se-ão, a partir da publicação desta
Emenda, aos limites da Constituição Federal, não se admitindo a percepção de
excesso a qualquer título”. Assim, já deveria estar sendo
respeitado, desde junho de 1.998, o teto único, correspondente ao subsídio dos
Ministros do STF. Ninguém poderia receber mais do que esse valor, a qualquer
título (art. 37, XI).
Mas
infelizmente, o STF decidiu que o art. 29 não é auto-aplicável, e que enquanto
o Congresso Nacional não aprovar a lei resultante da proposta conjunta dos
Presidentes da República, da Câmara, do Senado e do STF, fixando o subsídio dos
Ministros do STF, e que servirá como teto único, deverão continuar sendo aplicados
os três tetos, estabelecidos na redação anterior, revogada pela Emenda
Constitucional n° 19/98 !
Não
é fácil, porém, conciliar as vontades dos quatro Presidentes, no pertinente ao
valor do teto único. Ou será que não existe, na realidade, o desejo de que esse
teto vigore, porque acabará com os marajás?
Mas o absurdo mesmo é que o Executivo apresentou ao
Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional que acrescenta ao art.
37 da Constituição Federal o § 11, com a seguinte redação: “Lei da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de iniciativa do Poder
Executivo, poderá estabelecer limite para remuneração, subsídio, provento ou
pensão em valor inferior ao previsto no inciso XI, aplicável aos três Poderes e
ao Ministério Público, compreendidas, em qualquer caso, todas as vantagens
pessoais ou de qualquer outra natureza.” Trata-se, aqui, dos famosos
subtetos.
Se a norma da Emenda Constitucional n° 19/98, que prevê a
iniciativa conjunta dos quatro Presidentes, para a fixação do teto, já atentava
contra o princípio constitucional da separação dos poderes, atingindo cláusulas
pétreas e a independência do Judiciário, pela retirada da competência privativa
dos tribunais de propor ao Legislativo a fixação dos vencimentos do Judiciário
(art. 96, II, ‘b’), que dizer dessa proposta, que entrega nas mãos dos Chefes
do Executivo federal, estadual ou municipal, o poder para propor ao legislativo
a redução do limite fixado pelo teto?
Isso, supondo-se que esse teto venha a ser fixado, um dia, finalmente.
No tocante à cláusula ‘para vigorar na legislatura
seguinte’, revogada pela Emenda Constitucional n° 19/98, deve-se
observar que as Constituições Brasileiras sempre se preocuparam com o problema
da fixação dos subsídios dos legisladores, em face dos princípios
constitucionais da moralidade e da independência dos poderes.
Assim,
a do Império, em seu art. 39, estabelecia que
“Os deputados vencerão, durante as
sessões, um subsídio pecuniário taxado no
fim da última sessão da legislatura antecedente. Além disto, se lhes arbitrará
uma indenização para as despesas de vinda e volta”.
A
Constituição de 1.891, em seu art. 22, dizia que “Durante as sessões vencerão os senadores e os deputados um subsídio
pecuniário igual, e ajuda de custo que serão fixados pelo Congresso no fim de
cada legislatura, para a seguinte”.
Também
a Constituição de 1.934, em seu art. 30: “Os
deputados receberão uma ajuda de custo por sessão legislativa e durante a mesma perceberão um subsídio pecuniário mensal, fixados uma e
outro no último ano de cada legislatura para a seguinte”.
A Carta
de Getúlio Vargas, de 1.937, abandonou essa norma, revigorada porém em 1.946,
sempre estabelecida a fixação no fim de cada legislatura (art. 47). Essa regra
foi mantida na Constituição de 1.967 (art. 47), na Reforma de 1.969 (art. 33) e
na Constituição de 1.988.
Fixados os subsídios ao término da legislatura, isto é, no
fim do período de quatro anos de funcionamento do Congresso Nacional, para
vigorar durante toda a legislatura seguinte, o deputado e o senador não
legislavam em causa própria. Além disso, em decorrência do princípio da
independência dos Poderes, a fixação dos subsídios era feita, sempre, pelo
Legislativo, através de decretos legislativos, que não dependiam da aprovação
(sanção) do Presidente da República.
Observe-se que a mesma regra
moralizadora deveria vigorar, também, nos Estados e nos Municípios. Constava
das Constituições Estaduais, e a Emenda nº 1/69 estabelecia, em seu art. 15,
que a remuneração dos vereadores seria fixada para a legislatura seguinte.
Desde 1.978, porém, o Congresso Nacional, com base em uma
Resolução inconstitucional, passou a reajustar os próprios subsídios, no curso
da legislatura, e a Assembléia Legislativa do Estado do Pará adotou o mesmo entendimento, a partir de
novembro de 1.978, quando permitiu, através de decreto legislativo, o reajuste
dos subsídios do Governador, do Vice-Governador e dos deputados estaduais, “nas mesmas épocas e segundo as mesmas bases
estabelecidas para os vencimentos dos funcionários federais”..
Naquela oportunidade, publiquei no jornal O Liberal
(04.12.78) o texto “A Fixação dos Subsídios”.
Alguns
anos depois, a Lei Complementar no. 50/85, em seu art. 2o,
francamente inconstitucional, estabeleceu que a remuneração dos Vereadores
seria semestralmente revista pelas Câmaras Municipais, de acordo com os
balancetes contábeis fornecidos pelas Prefeituras, o que, em outras palavras,
significava que as Câmaras Municipais, informadas a respeito do total da receita
efetivamente realizada pela Secretaria Municipal de Finanças, imediata e
zelosamente providenciariam para que a despesa com sua remuneração não se
afastasse do limite máximo fixado pela Lei Complementar, isto é, dos 4% da
receita efetivamente realizada (hoje, esse limite está em 5%). Ou seja, apesar da norma constitucional
dizer que o subsídio deveria ser fixado para vigorar durante quatro anos, o
Congresso entendeu que ele poderia ser reajustado de seis em seis meses, pelos
vereadores, em causa própria e de acordo com o aumento da arrecadação
municipal, em uma espécie de participação nos lucros da empresa! Em
conseqüência, a Câmara Municipal de Belém imediatamente aprovou a Resolução nº
01/86, efetivando esses reajustes.
Naquela
oportunidade, publiquei no jornal O Liberal
(24.08.86) o texto “A Remuneração dos Vereadores”.
Em
inúmeras oportunidades, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucionais
normas estaduais e municipais que permitiam a fixação dos subsídios para a
mesma legislatura. Ainda sob a vigência da Constituição de 46, o STF, em
Acórdão unânime (04.06.59), dizia: “Exigindo
a fixação do subsídio, bem como da
ajuda de custo ao fim de cada Legislatura, a Lei Básica quis preservar o
legislador da pecha de legislar em causa própria, deixando-se influenciar pela
cobiça, que é sentimento fatal à natureza humana e, do ponto de vista jurídico,
simplesmente imoral. Assim, é defeso ao legislador, por artifício, desdobrar o
subsídio, dando-lhe a designação que lhe pareça mais consentânea ou mais sonora,
a fim de aumentá-lo”. (Rev.
For., vol. 195, pp.133/138)
Mas
depois de mais de vinte anos de tentativas, finalmente criaram coragem, e a
norma moralizadora foi suprimida, através da Emenda Constitucional n°19/98, de
modo que os subsídios dos deputados estaduais serão fixados por lei de
iniciativa da Assembléia Legislativa (art. 27, § 2°), assim como os do
Governador, do Vice-Governador e dos Secretários de Estado (art. 28 § 2o),
enquanto que os subsídios dos Vereadores, do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos
Secretários Municipais serão fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal
(art. 29, incisos V e VI).
Assim, além de serem fixados na mesma legislatura, os
subsídios são fixados através de leis, dependendo portanto da sanção do
Governador ou do Prefeito!
A
Constituição do Pará foi adaptada a essas normas pela Emenda Constitucional nº
15, de 03.08.99, mas é preciso observar que essas reformas não têm o condão de
tornar moral a legislação em causa própria, e que o princípio da moralidade
ainda não foi revogado. Ao contrário, continua no texto da Constituição Federal
(art. 37), e no art. 20 da Constituição Estadual, embora não seja muito
respeitado, porque a partir de 99, em
muitos municípios brasileiros, com a revogação da cláusula “para vigorar
na legislatura seguinte”, os vereadores se concederam, e aos seus
Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários, generosos aumentos de subsídios.
É evidente,
assim, que sendo representantes do povo, os parlamentares federais, estaduais
ou municipais, devem priorizar os interesses deste, em vez de legislarem em
causa própria, como no recentíssimo episódio da rejeição do veto presidencial,
pelo Congresso Nacional, para a aprovação da lei que anistia as multas
eleitorais, sem se preocuparem com a situação de crise, de desemprego, nem com
o salário-mínimo de R$151,00 e com as carências pertinentes à saúde, à educação
e à segurança, que atingem, apenas para exemplificar, aqueles que os elegeram e que pagam os tributos escorchantes, no
nível de 31% do PIB!
O
mesmo deve ser dito do Tribunal, que aprova a solução artificial do
auxílio-moradia, ou que aprova em causa própria aumentos indevidos, como o
Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, conforme amplamente divulgado pela
Imprensa, e que depois, sendo impedido
de concretizar seu intuito, aposenta o único magistrado que teve a coragem de
denunciar a ilegalidade!
e.mail: profpito@yahoo.com