Os Desafios da Expansão do Ensino Superior
João
Batista Araujo e Oliveira
I -
Expansão: oferta, demanda e limites
Os
dados são conhecidos, enfatizemos apenas aqueles que são mais importantes para
a análise objetiva da questão. Os dados estão todos baseados na publicação
"Desenvolvimento da Educação no Brasil", do Ministério da Educação
(1996) e nas "Estatísticas Educacionais do Brasil", também do MEC,
publicação sem data.
No
momento, o país possui cerca de 5 milhões de alunos
matriculados em escolas secundárias, dos quais 851.428 concluiram
o segundo grau em
A
cada ano, pouco mais de 2 milhões de alunos tentam
ingressar no ensino superior. Para uma oferta de cerca de 580 mil vagas,
distribuídas entre as diversas instituições, há um ingresso anual de 550 mil
alunos. No total há 1.660.034 alunos, sendo 690.450 em instituições públicas e
970.584, ou seja, 58% em instituições privadas. Do total, cerca de 1 milhão estão em instituições denominadas universidades, os
demais em instituições isoladas de ensino superior. Cerca de 250 mil alunos
concluem os cursos superiores a cada ano.
Para
cada corte de idade temos cerca de 3,3 milhões de indivíduos. Na medida em que
uma parte significativa desses indivíduos concluirem
o segundo grau, configura-se uma demanda crescente pelo ensino superior.
Ademais, a necessidade de atualização e formação permanente coloca um desafio
adicional para as instituições de ensino superior _ são os adultos e
profissionais já formados que voltarão a demandar cursos superiores.
Além
do que denotam os aspectos puramente quantitativos, é forte, na população
brasileira, o desejo de estudar em geral, e mais forte ainda o sonho de
ingressar numa instituição de ensino superior. O maior entrave a esse
desiderato, na opinião da população, é a falta de recursos financeiros.
Ademais,
ainda que o mercado de trabalho se configure cada vez mais misterioso e
imprevisível, o desenvolvimento econômico, tecnológico, político, social e
cultural do país indicam a importância crescente de aumentar significativamente
o número de brasileiros com um nível de instrução mais elevado.
Não
cabe aqui _ por falta de tempo e espaço _ caracterizar de forma mais detalhada
a natureza da demanda por tipo de curso e localização geográfica, nem os
problemas de descompasso de expectativas e de informação a respeito de cursos,
formações, carreiras profissionais e ajustes entre diploma e oportunidades de
trabalho na área respectiva. O certo é que, apesar dos desajustes, a demanda real
e potencial agregada por algum tipo de curso superior é, hoje, muitas vezes
superior à capacidade instalada.
*
Consultor, Presidente da JM Associados
Como atender a essa demanda em expansão?
A
resposta completa a essa pergunta sem dúvida requer uma análise de várias
questões relacionadas com disponibilidade de recursos humanos qualificados e
formatos organizacionais. Mas esbarra, antes de mais nada,
na questão do financiamento.
O
primeiro fato relevante, a notar, é a exaustão da capacidade do governo federal
e dos governos estaduais de fazer face aos compromissos já assumidos com
instituições de ensino superior. Portanto, é inviável supor que o poder público
será capaz de bancar a necessária expansão do ensino superior através das
instituições públicas ou mesmo mantendo a atual forma de financiamento.
Profundas mudanças são necessárias só para manter o que já existe de ensino
vinculado diretamente ao poder público. Obviamente, equacionar esta questão não
é sinônimo de equacionar o problema, que não se limita a resolver os problemas
das instituições federais de ensino, e sim o problema real, que é o
financiamento dos alunos, sobretudo os carentes, onde quer que estudem.
Jacques
Schartzman (1996) analisou os custos e gastos com
ensino superior público, onde revela que o governo federal vem despendendo
recursos crescentes com o ensino superior. Esses recursos já estão próximos dos
7 bilhões de reais/ano, consumindo muito mais do que
os 18% previstos na Constituição para gastos com educação. Nos últimos anos, o
orçamento do ensino superior vem sendo financiado com recursos que são
desviados do salário educação, através do engenhoso _ mas socialmente injusto
do ponto de vista de eqüidade _ mecanismo do Fundo Social de Emergência. Ou
seja, o governo bloqueia 20% dos recursos do salário educação, cerca de 500
milhões de reais/ano que deveriam ir para o primeiro
grau - e os devolve ao MEC, que os emprega com o ensino superior. Quando
terminar a vigência desse fundo, já se prevê uma mini-crise para financiar só o
que está aí.
Os
governos estaduais, por sua vez, gastam mais do que podem _ e na opinião de
muitos, mais do que devem _ com o ensino superior. Sem entrar nos detalhes, é
pouco razoável esperar que os estados terão condições
financeiras, e políticas, de aumentar, ou sequer de manter, os atuais níveis de
gasto com educação, particularmente com educação superior.
Raciocionamos com base no fato de que os recursos para educação superior são
escassos, e, no quadro vigente, estão no limite. Esta premissa nos leva a
afirmar que é muito remota a possibilidade de se vislumbrar maiores recursos do
governo para investir no ensino superior no futuro próximo. E não só por razões
de limitação de recursos, mas também por razões de política alocativa,
de justiça distributiva e razões de legitimidade política.
Resta,
ainda, a válvula do aumento da eficiência. É certo que os custos do ensino
superior público, sobretudo federal, não guardam relação defensável com os
serviços oferecidos aos alunos, nem com parâmetros nacionais ou internacionais.
Esperar um aumento significativo da oferta de vagas nas instituições públicas
de ensino, particularmente nas universidades federais, é um nobre desiderato de
todos os cidadãos, mormente dos contribuintes. Mas os fatores culturais, burocráticos
e políticos, associados às ineficiências existentes, deixam pouca margem de
esperança a respeito de uma significativa reversão desses parâmetros num futuro
próximo.
Desta
forma, a única saída viável ou visível para a expansão do ensino superior reside
na criação de condições para o desenvolvimento do ensino privado. Essas
condições implicam a reestruturação das políticas de financiamento do ensino
superior e a superação dos entraves à ação do ensino privado.
Mas
será o ensino privado capaz de responder a esse desafio? Haverá demanda e
condição financeira suficiente para suportar essa expansão?
Não
falta, no setor privado, demonstração de vontade de preencher esse vácuo, nem
legitimidade para tal. Quase 60% do total dos universitários brasileiros participam
dessas instituições, pagam por seus estudos e auferem
significativos retornos econômicos como resultado desse investimento. Há
centenas de solicitações para transformação de instituições em universidades, e
milhares de pleitos para oferecer cursos, todos pendentes de autorização.
Os
entraves
O que
entrava, então, o desenvolvimento do ensino superior? Se não faltam
empreendedores privados e se não faltam alunos dispostos inclusive a pagar
pelos seus estudos, o que estaria entravando o sistema, que não cresce há mais
de 15 anos?
Todas
as análises existentes apontam para uma só direção: as políticas erráticas e
errôneas do governo, particularmente do governo federal, em relação ao ensino
superior. No entanto, a distorção que preside a política de ensino superior
atribui a entidades denominadas universidades certas regalias que são
outorgadas através de um regime cartorial e burocrático, idêntico ao que nos
legaram os portugueses no século XVI. Essa distorção, injustificável por todas
as razões, de um lado empurra todos os provedores a pleitear o status de
universidade, e, de outro, a burocracia a dificultar por todos os meios o
acesso da não universidade a autorização pleiteada, em nome de critérios
indefensáveis.
Além
disso, há um preconceito, que precisa ser evidenciado e denunciado, em relação
ao setor privado. A mesma elite que manda seus filhos para a escola secundária
privada denuncia esta escola como ilegítima, exploradora ou de má qualidade
quando o provedor privado opera no ensino superior. Dois pesos, duas medidas.
Uma hipocrisia!
As
distorções das políticas públicas se manifestam em todos os setores: nos
mecanismos de financiamento, que privilegiam elites já privilegiadas e que se
constituem no maior gerador e perpetuador de desigualdade de renda do Brasil (e
talvez no mundo); nas regulamentações referentes à abertura de cursos; nos
sistemas burocráticos, policialescos e curruptos de supervisão; na falta de mecanismos adequados
de controle de qualidade; e na manutenção de concepções curriculares rígidas e
ultrapassadas. E, sobretudo, na falta de liberdade para as instituições
públicas e privadas se estabelecerem e operarem segundo regras mais racionais e
mais adequadas ao logro de eficiência e qualidade.
O
entendimento do mecanismo que entrava a expansão do ensino superior precisa ser
deslindado, para permitir a sua superação. Há dois erros de base no raciocínio
do governo.
O
primeiro erro consiste em estender, através de um raciocínio lógico tortuoso, o
princípio de indissociabilidade ao conceito de que
todas as instituições que queiram se denominar universidade tenham que praticar
a tal indissociabilidade. Mas admitamos que no
Brasil, por razõees de exotismo tropical, queiramos
que todas as universidades efetivamente pratiquem tal princípio. E descartemos,
no momento, o problema prático que isso acarretará, de definir o que seja tal indissociabilidade, desenvolver instrumentos para
mensurá-la, aplicar os instrumentos e tomar as medidas corretivas para descredenciar a maioria das
instituições que portam esse nome, já que poucas delas subsistiriam a qualquer
definição mais rigorosa. Concentremo-nos apenas na questão lógica, implicada no
segundo erro.
O
segundo erro consiste em dizer que, por terem um corpo docente mais qualificado
(o que já é um erro, pois nada impede uma não universidade de tê-lo), por terem
colegiados acadêmicos com poder de decisão sobre currículos (que na verdade é
um faz de conta porque os currículos são amarrados pelas camisas de força da
legislação) e, sobretudo, por fazerem pesquisas, os professores dessas
instituições estariam mais capacitados do que os professores das instituições
isoladas a identificar a necessidade de curso e prover os currículos adequados.
O raciocínio é ilógico e insustentável.
Mas é
exatamente no acoplamento desses dois erros lógicos que se assenta toda a argumentaçäo do governo para defender a aplicação de
critérios diferenciados para universidades e para os entes imperfeitos que não
atingiram o ideal da universidade humboldtiana, que
já teve e esgotou seu papel no século XIX.
Ademais,
o raciocínio ignora o fato de que são justamente as instituições periféricas
que, sobrevivendo exatamente às custas do mercado, as
que não podem se dar ao luxo de ter erro de pontaria no ajuste entre oferta e
demanda por oportunidades de cursar uma escola superior.
Os
entraves, no entanto, não se esgotam totalmente dentro do setor público. No
seio do próprio setor privado, o maior entrave é a falta de objetivos comuns
dos provedores privados. As dissenções internas entre
os vários tipos de provedores e a busca de interesses individuais em detrimento
da busca do bem-estar coletivo tem prejudicado
fortemente a coesão do setor e contribuído para a falta de clareza e
consistência no encaminhamento de propostas. Falta também uma estratégia de
comunicação social _ o setor é bem visto pela sociedade e pelos clientes, mas
rejeitado pelo poder executivo, ignorado pela imprensa e visto com maus olhos
por segmentos importantes do legislativo _ pelo menos em público.
II -
Uma luz de esperança: o discurso do Ministro Paulo Renato Souza
O
discurso proferido pelo Ministro Paulo Renato Souza, na abertura do Seminário
sobre Ensino Superior realizado em Brasília no dia 16 de dezembro de 1996,
lança uma luz de esperança para a juventude brasileira. Mais importante, o
discurso é proferido por um Ministro que já diz a que veio,
que tomou importantes medidas na área do ensino superior público, como a
revisão dos critérios para eleição de reitores e a instituição de mecanismos
externos de controle de qualidade, através do provão. E que se mostra
genuinamente interessado em promover mudanças constitucionais que permitam às
Universidades Federais tornarem-se mais eficientes. Portanto, trata-se de
palavras ancoradas num ministro que tem crédito.
Entre
os aspectos em que o discurso do Ministro avança, gostaria de registrar:
O
Ministro amplia a discussão sobre a universidade, usando abertamente o termo
ensino superior. Reconhece, ainda que de forma insatisfatória, que o conceito
de indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão
é inservível e se aplica, tanto conceitual como
empiricamente, apenas a algumas instituições.
O
Ministro reconhece a rigidez do modelo atual e a necessidade de ampliar a
variedade e flexibilidade de instituições, cursos e mecanismos de avaliação.
O
Ministro reconhece entraves de natureza cultural, política e corporativa,
sobretudo no que se refere ao atrelamento entre
diploma e direito de exercício profissional como barreiras a uma revisão mais
profunda dos mecanismos de controle de qualidade pelo governo.
O
Ministro propõe novas formas de controle sobre as instituições privadas,
passando a delas exigir a publicação de seus
resultados financeiros. Promete, ainda, alguns avanços nos critérios e
mecanismos relacionados com a abertura de cursos em algumas áreas do
conhecimento.
Mais
importante de tudo, o Ministro abre o diálogo, expõe a sua visão, estabelece um
cronograma e dispõe-se a ouvir e a debater.
Mas,
em que pese a seus múltiplos méritos, o discurso ainda deixa muito a desejar.
Para uma geração que assistiu, de surpresa, à queda do Muro de Berlim, a
dissolução da União Soviética, às velocíssimas mudanças nos processos de
organização da produção e internacionalização de mercados de consumo, bem como
às profundas modificações culturais que se processam em todas as sociedades, um
discurso que se baseia apenas no que é visível e possível hoje, deixa muito a
desejar. Um Brasil que vê o papel do governo sendo revisto radicalmente em
tantos outros setores, espera uma revisão igualmente profunda sobre o papel e
os instrumentos de ação do governo na provisão e regulamentação da educação.
O
Ministro fala de mudanças possíveis, mantendo como quadro de referência as
categorias do passado, particularmente o modelo da grande universidade e o
estado provedor. No seu discurso de campanha, o Presidente FHC seduziu o país
ao prometer engajar o governo nas mudanças necessárias, e não apenas nas
mudanças possíveis. O país começa a assistir a transformação do estado provedor
para um estado regulador _ que em muitos casos significa melhores regras, em
outros, maior liberdade e desregulamentação. Na educação superior, essa
transformação ainda não começou. Ora, a arte do possível é tarefa para
políticos convencionais. O presidente prometeu que seu governo praticaria a
arte do necessário, própria de estadistas, do porte do Presidente e de seu
Ministro. Daí o direito de esperarmos mais do discurso e das ações do Ministro.
Aqui,
tratamos das medidas que julgamos necessárias para dar uma esperança à
juventude brasileira, e não de medidas que são possíveis para satisfazer apenas
aos interesses das elites, das corporações, e dos grupos que só aceitam falar
do ensino privado quando ele serve para manter seus privilégios de elite e de
acesso ao ensino oficial gratuito. Tudo sob o pretexto de preservar a
qualidade.
Em
particular, o discurso do Ministro merece reparos em três aspectos
inter-relacionados e fundamentais para fazer avançar a discussão.
Em
primeiro lugar, o próprio título do discurso, "por uma nova
UNIVERSIDADE", e as freqüentes menções a uma certa
idéia utópica e irrealista de universidade ainda permeia o discurso do ministro
_ refletindo a distorção existente entre uma política voltada para um conceito
de universidade que não existe e as reais necessidades do ensino superior e de
sua diversificação. Ou seja, o Ministro reconhece a realidade e a necessidade
de uma diversificação institucional, mas seu discurso ainda permanece
prisioneiro da camisa de força do MEC como o gestor de uma rede de
instituições, e não como formulador de uma política de ensino superior para
todo o país.
Um
segundo aspecto preocupante, é a insistência no conceito de indissociabilidade
como critério definitório do que seja uma
universidade. De um lado o Ministro reconhece que efetivamente o conceito não
existe nem deve existir como norma para todas as universidades _ a não ser no
sonho dos Constituintes e nos pareceres dos conselheiros. Mas ao optar por esse
conceito único de Universidade indissociável para torná-la a única depositária
da autonomia, mutila a possibilidade de uma abertura essencial para que o
sistema possa se expandir. Ademais, como já observamos anteriormente, cria um
descompasso com a realidade _ já que a maioria das instituições que já se
denominam universidades, inclusive públicas, não corresponde a esse conceito. A
grande implicação do conceito é prática: só quem mantém a indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão pode ser chamado de
Universidade. Este nome, por sua vez, enseja tratamentos diferentes,
particularmente nas questões relacionadas com autonomia, e, especialmente, na
liberdade para abertura de cursos _ que é a chave da expansão, da competição,
da diversificação e da luta pela eficiência e qualidade. O tratamento da
questão permanece inadequado, e é tão mais preocupante quanto, em outros
documentos do MEC apresentados no mesmo encontro, fica clara a intenção do
Ministério em continuar diferenciando a autonomia de instituições de acordo com
a aplicação equivocada dos conceitos de indissolubilidade e autonomia _ o que
garante o entrave à expansão do ensino superior.
O
terceiro problema é o mais grave de todos: embora o discurso do Ministro acene
com vários avanços conceituais e operacionais, sem prejuízo das ressalvas
acima, na prática a Proposta de Emenda Constitucional, PEC, que encaminhou ao
Congresso Nacional volta-se exclusivamente para os problemas das Universidades
Federais. O problema não é de estratégia ou oportunidade, mas das consequëncias de manter o equívoco do atrelamento
dos conceitos de indissolubilidade, universidade e autonomia, que trará
implicações nefastas para o ensino não-oficial. Desconhecer o problema, ou
deixá-lo para ser tratado em outra reforma constitucional é, na melhor das
hipóteses, perder uma oportunidade histórica para
entrarmos no século XXI olhando para frente, e não atrelados pelas amarras que
nos unem ao que houve de pior no estatuto colonial.
Mas
como o convite é para o diálogo e para apresentação de propostas, vamos a eles.
III -
Possíveis caminhos e propostas
Neste
preciso momento, encontra-se no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda
Constitucional que pode trazer profundas implicações para o futuro do ensino
superior no país. Encontra-se na mesa, também, a convocação do Sr. Ministro da Educação para o debate da questão,
acompanhada de estudos do Ministério. Este seminário faz parte da busca de
consensos do setor privado para articular suas contribuições. Entendo que para
isto fui convidado, portanto não hesito em passar diretamente a considerações
de ordem prática.
Em
primeiro lugar, parece-me prioritário que o setor privado se articule para
apoiar emendas que transformem a PEC no ponto de partida para uma nova visão do
ensino superior _ e não se limite à questão das federais. A redação proposta
mantém o conceito de Universidade, concebendo-a como uma Universidade
indissolúvel e como o modelo único (só as indissolúveis podem ser chamadas de
Universidade e só as universidades podem ter autonomia). A exceção vira regra.
O resto são formas imperfeitas, que precisam ser tuteladas. Embora a intenção
explícita do executivo seja apenas a de regulamentar a
autonomia das instituições federais, na prática todos sabemos que,
conceituada a universidade dessa forma, abre ensejo para o controle e perda de
autonomia das universidades não oficiais.
Daí
ser necessário assegurar, no texto Constitucional, que:
as instituições de ensino superior possam se organizar de formas
distintas para prover atividades de ensino, pesquisa e/ou extensão;
a liberdade acadêmica seja assegurada a todas essas instituições;
o direito de abrir cursos se aplique indistintamente a todas
instituições, cabendo ao poder público assegurar a qualidade do ensino e a
validade dos diplomas, podendo para tanto estabelecer mecanismos de avaliação,
credenciamento e recredenciamento.
Creio
que esta é a primeira batalha a ser vencida, a mais importante, e a mais
imediata. Mas é preciso ter clareza de que este é o primeiro
passo, e a aprovação da PEC, nos termos propostos, manterá o país no regime
de tutela, das capitanias hereditárias, do clientelismo, da burocracia e da corrupção que a ela se associa de maneira
quase que inevitável.
A
segunda refere-se ao financiamento. O financiamento público da educação no
Brasil constitui-se na forma mais perversa de distribuição de renda. A
proporção recursos alocados pelo governo aos diversos níveis de ensino provoca
essa distorção. Além da distorção alocativa entre
níveis de ensino, há uma outra, igualmente injusta e injuriosa,
que consiste em alocar recursos para instituições _ e não para os
alunos. Na forma como é implementada, essa política acentua, ainda mais, as
desigualdades de renda no Brasil e privilegia sobretudo
os alunos que menos necessitam de subsídio governamental.
Pelos
critérios da arte do possível, dificilmente o governo estaria disposto, neste momento,a reverter esse quadro. Muito menos a abrir a
discussão em torno do inevitável ensino pago nas instituições públicas. O peso
das elites e dos interesses corporativos ainda é predominante. Isso é
compreensível. Mas cabe, antes de mais nada,
esclarecer a sociedade a respeito das injustiças e distorções dessas políticas,
denunciar o quadro vigente e apresentar propostas complementares e
alternativas. Enquanto se mantém privilégios para determinados indivíduos e
corporações, é preciso estabelecer mecanismos de financiamento voltados para
todos os alunos carentes _ estejam eles no ensino público ou privado.
O
atual sistema de crédito educativo possui inúmeras insuficiências e
deficiências. A maior delas é de recursos, a segunda é gerencial, a terceira é
de critérios. No momento atual, por exemplo, os critérios privilegiam um
determinado tipo de instituição em detrimento de outras _ uma opção
injustificável e claramente ideológica e que discrimina com base na motivação
entre os diferentes provedores _ no caso, as escolas comunitárias. Além disso,
as políticas de crédito educativo não são usadas nem para induzir investimentos
em áreas geográficas ou setores considerados prioritários, nem para motivar
alunos a buscar um maior nível de desempenho. Muito menos para favorecer os
mais carentes. Ou seja, está tudo errado.
A
segunda prioridade, portanto, deve residir na elaboração de propostas viáveis
para o crédito educativo _ há propostas em curso, o MEC está elaborando alguns
estudos, diversos parlamentares vêm apresentando idéias _ umas mais viáveis que
outras. Cabe aprofundar a análise dessas alternativas e juntar forças para
viabilizar uma proposta de financiamento do ensino superior consistente, viável
e socialmente defensável.
Um
terceiro conjunto de ações deve se concentrar na
formulação e busca de novos mecanismos de controle de qualidade. A meu ver,
essa política deveria possuir dois ingredientes centrais:
liberdade de entrada, auto-declaratória e mediante o cumprimento de
requisitos formais. Enquanto houver autorização prévia para funcionamento de
cursos haverá cartorialismo, clientelismo e corrupção. E nenhum controle real de
qualidade;
exame de ordem,
para profissões regulamentadas.
Ambos assuntos são importantes, mas o espaço e tempo não permitem o seu
aprofundamento neste momento.
Além
desses dois ingredientes, é óbvio que, na medida em que o governo for chamado a
validar diplomas, ele terá de estabelecer seus mecanismos de controle de qualidade
_ e nesse aspecto o provão, com todas as críticas que lhe possam ser feitas, é
infinitamente superior ao mecanismo cartorial e burocrático dos mecanismos de
credenciamento e fiscalização policialesca que ainda
vigoram. O pior dos dois mundos, no entanto, é conviver com o provão e com o cartorialismo. O importante é saber que é possível
controlar a qualidade sem tolher a expansão do sistema e a liberdade para
criação de cursos. Há formas inteligentes, racionais e competentes de
regulamentação e controle de qualidade _ os critérios existentes sobrevivem
porque estão subordinados a outros interesses.
Todo
o resto deveria ser deixado por conta das próprias instituições, individual ou
coletivamente, seguindo a vocação e a missão de cada curso. Em outra apresentação
nesta Associação de Mantenedoras já havia sugerido que a ABMES se interessasse
em patrocinar o desenvolvimento de mecanismos de avaliação que captassem o
valor agregado pelas instituições. Como a variedade dos alunos dos cursos
superiores tende a aumentar cada vez mais, e os cursos de graduação se tornam
cada vez mais gerais e menos profissionalizantes, esses indicadores se tornarão
cada vez mais necessários para explicar à sociedade os benefícios de uma
educação superior.
Ainda
falando de controle, a sugestão do Ministro da Educação de que as instituições
privadas publiquem os seus balanços deveria se tornar um compromisso ou
exigência de transparência para todas as instituições, especialmente as
instituições públicas. A sociedade precisa saber para onde vão os recursos, com
que eficiência são utilizados, e que resultados geram.
É inconcebível que a exigência seja feita apenas às instituições privadas.
Em
quarto lugar, é imperioso rever o vestibular. De um lado, é fundamental
desatrelar o vestibular do currículo do segundo grau, deixando mais liberdade
aos sistemas de ensino e às escolas para diversificar os currículos de segundo
grau. Além disso, é importante dar a cada instituição de ensino superior a
liberdade para estabelecer seus critérios de entrada _ respeitados,
naturalmente, os princípios de equidade no caso das instituições públicas e o
de transparência, no caso das instituições privadas. Dessa forma, o vestibular
poderia ser segmentado em pelo menos duas partes. A primeira parte poderia ser implementada através de um teste geral, que avaliasse o domínio
certas habilidades e conhecimentos acadêmicos de caráter geral,
considerados pré-requisitos ou preditores de
desempenho em cursos superiores _ exames do tipo SAT ou ACT. Esses exames não
só poderiam servir como critérios básicos de acesso (o ponto de corte ficaria a
critério de cada instituição) como poderiam também servir para calibrar acesso
ao crédito educativo _ em complemento a critérios de carência. Além disso,
exames nacionais e uniformes, desse tipo, teriam virtudes de justiça, eqüidade
e eficiência, barateando custos para os alunos e permitindo-lhes candidatar-se
a instituições fora de seu domicílio a custos suportáveis. A outra parte
ficaria por conta de cada instituição, e poderia ou não incluir provas e outras
exigências adequadas ao seu perfil.
Em
quinto lugar, é necessário solicitar do governo o imediato abandono _ a palavra
é correta _ dos currículos mínimos. As instituições deveriam ter liberdade de
fixar e modificar com liberdade os seus cursos, programas e currículos,
inclusive e sobretudo no ensino profissional. Quanto
mais inteligentes forem os exames de ordem
e de certificação profissional, mais flexibilidade e criatividade o sistema
educacional terá para formar profissionais capazes de se adaptar às mudanças do
mercado de trabalho. Naturalmente que devem ser preservados
compromissos assumidos com alunos _ mas não no ridículo grau de detalhe hoje
existente, que chega ao cúmulo de impedir que se ministre ergonomia no lugar de
Educação Física III, só porque o nome deste curso estave
escrito no currículo proposto. Já passa da hora de encerrar este ridículo
capítulo da história educacional brasileira.
Em
sexto lugar é importante, dada a cultura credencialista da sociedade, estabelecer critérios gerais
para a outorga de certificados intermediários de estudos superiores _ ou seja,
estabelecer regras gerais para o ensino pós-secundário. Atualmente cerca de 60%
dos que ingressam nas escolas superiores não concluem seus cursos _ e muitos
deles poderiam obter certificados intermediários que permitissem uma melhor
sinalização para o mercado de trabalho e um maior grau de satisfação com os
estudos realizados.
Finalmente,
cabe encetar uma revolução cultural e um esforço de comunicação social.
Um
primeiro esforço, de curto prazo, deve ser concentrado em torno da discussão da
PEC que trata da autonomia das universidades. Este é o ponto de partida de uma
profunda reforma do ensino superior _ e a proposta que está na mesa não atende
ao que a sociedade quer e precisa. A agenda dessa campanha foi delineada no
presente artigo, o público alvo são os parlamentares e a imprensa.
Um
segundo esforço de mobilização se faz necessário em torno das novas formas de
regulamentação e desregulamentação do ensino superior, preparando o país para
entrar no Século XXI com os olhos voltados para a
frente, e não para um passado idílico que nunca existiu _ afinal estamos nos
trópicos, no Brasil, e não na Sorbonne do século XIX.
O
terceiro movimento consiste em rediscutir com a sociedade, particularmente com
os alunos, a questão do formalismo, do credencialismo
e da regulamentação das profissões, de forma a criar um entendimento mais
realista das realidades do mundo, da economia e do mercado de trabalho. Nesse contexto,
surge a necessidade de tipos e formas distintas de instituições de ensino
superior, cada uma com seu papel, com sua missão e com objetivos e estratégias
diferenciadas - o fato de não ser universidade ou não ter o canudo de doutor
não é nem deve ser nenhum pejorativo. Qualquer que seja a sua função, no
entanto, o ensino superior, como revela o nome, sempre terá como objetivo
desafiar o estudante a dar o máximo de si e extender
ao máximo a sua capacidade intelectual.
O
setor privado tem uma responsabilidade histórica na redefinição dos rumos das
políticas de ensino superior no Brasil. Ele já responde por 60% do alunado e,
com a expansão necessária, deverá representar ainda muito mais. Está na hora do
setor privado se unir em torno de alguns pontos de consenso, superar suas
divergências internas, conciliar seus interesses contraditórios e, de forma
articulada, competente, e, em uníssono, contribuir para provocar uma ruptura
que viabilize a expansão das oportunidades de educação superior para a juventude
brasileira.