O risco
profissional
por Jacy de
Souza Mendonça em 16 de agosto de
2004
Resumo: Se não tiverem êxito na luta contra a regulamentação, os
jornalistas correm o risco de ingressar no rol dos demais profissionais
brasileiros que só podem exercer uma profissão se os que já a exercem o
permitirem.
© 2004 MidiaSemMascara.org
O projeto de lei sobre o Conselho de Jornalismo é um
dos maiores benefícios que o atual governo trouxe ao País. Critica-se que ele
representa um cerceamento indevido à liberdade de comunicação e expressão, o
que é verdade, como é também verdade que ele corresponde a uma restrição
indevida à liberdade de exercício profissional. Exatamente por isso, entendo
que ele é muito bom.
Seu mérito está em acordar o pensamento nacional para
um problema sério que vem de longos anos e se agrava cada vez mais. Parece que
ninguém se lembra de que, para o exercício da medicina, o profissional deve
ingressar e se sujeitar ao CRM; para exercer a engenharia e similares, há que
ingressar e obedecer ao CREA; para advogar é necessário ingressar na OAB,
contribuir para ela e sujeitar-se a seu controle. Para quase todas as
profissões, enfim, há um Conselho assemelhado em nosso País, com poderes também
assemelhados. Talvez o mais constrangedor seja exatamente a OAB, que já tem
atribuição para autorizar ou não a abertura de
Faculdades de Direito, realizar um julgamento público de cada escola, examinar
os bacharéis para decidir se podem ou não ser admitidos em seus quadros,
condicionar o exercício da advocacia à comprovação de ser seu associado e
pagar-lhe a contribuição mensal; além disso, ela controla o procedimento de
seus sócios, limita a concorrência que novos profissionais podem fazer aos
antigos, e deles arrecada, enfim, mais do que a maioria dos Estados da
União consegue arrecadar de seus contribuintes tributários.
Toda essa estrutura vem da Idade Média, quando
imperavam as corporações de ofício, ou corporações de mestres. Ninguém podia
ter o privilégio de exercer uma profissão sem pertencer à corporação a ela correspondente
e obedecer a seus regulamentos. Ninguém conseguia também mudar de profissão,
porque não era admitido em outra corporação. Para ingressar em uma delas, era
inicialmente necessária longa aprendizagem, seguida da prestação de uma prova
de habilitação que, com o correr dos tempos, foi substituída pelo pagamento de
mensalidades ou anualidades. Aos poucos, o ingresso ficou condicionado a ser
filho de um de seus membros, pois, caso contrário, o candidato não conseguia
ser admitido. Esse sistema, por ter sido considerado social, em oposição ao
individualismo, foi acolhido como ideal, pela Doutrina Social da Igreja
Católica. Em 1517, em Coimbra, o Regimento da Festa do Corpo de Deus enumerava
todas as profissões do país, agrupadas por ofícios.
O império das corporações foi extinto em todo o mundo
entre os anos 1700 e 1800, com a tomada de consciência de que elas
representavam grave obstáculo não só à liberdade, mas também ao desenvolvimento
dos cidadãos e da economia dos povos. Em Portugal, elas foram extintas por um
decreto de 7 de maio de 1834.
Mussolini retomou, no entanto, a idéia corporativista
como forma de combater o socialismo marxista instaurado na Rússia e que
ameaçava expandir-se pela Europa. Como o marxismo sustentava que a sociedade
humana é estruturada sob a forma de luta de classes, ele resolveu demonstrar
que, ao contrário, não há luta de classes, mas coordenação social das classes e
profissões, organizadas em suas corporações. Graças a Mussolini, temos, ainda
hoje, no Brasil, o sindicato único compulsório (equivalente a uma corporação)
para cada segmento profissional e região, fruto do sistema fascista copiado por
Getúlio Vargas.
Ninguém reclama contra essa constrição malsã à
liberdade, porque ninguém tem voz para fazê-lo. Por isso é muito bom assistir à
chegada do sistema aos profissionais da imprensa, que tem voz, podem e gostam
de reclamar; é muito bom que eles gritem, antes que o monstro os engula. Que o
façam! Que o façam com toda a sua força! Que estendam seu grito não só contra a
corporação dos jornalistas, mas contra o sistema corporativista, contra todas
as corporações existentes em nosso País, seu poder econômico e sua força
esmagadora do cidadão.
Se
não tiverem êxito nesta luta, os jornalistas correm o risco de ingressar no rol
dos demais profissionais brasileiros, que só podem exercer uma profissão se os
que já a exercem o permitirem, que só podem fazer o que estes quiserem e
permitir que se faça.