ORAÇÃO AOS MOÇOS
RUY BARBOSA
Discurso proferido em 1920 (mas poderia ter sido hoje)
Ruy Barbosa foi convidado a
paraninfar a Turma de 1.920 da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo. No entanto, em virtude do seu estado de saúde, como ele não poderia
comparecer à solenidade, dois dos bacharelandos foram buscar em Petrópolis o
texto, que foi lido pelo Diretor da Faculdade, o Professor Reinaldo Porchat.
Senhores:
Não quis Deus que os meus cinqüenta anos de
consagração ao Direito viessem receber no templo do seu ensino em São Paulo o
selo de uma grande bênção, associando-se hoje com a vossa admissão ao nosso
sacerdócio, na solenidade imponente dos votos em que o ides
esposar.
Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o
coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o
seu coincidir num ponto de interseção tão magnificamente celebrado, era mais do
que eu merecia; e, negando-me a divina bondade um momento de tamanha ventura,
não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar.
Mas, recusando-me o privilégio de um dia tão
grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco,
presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade.
Assim que não me ides ouvir de longe, como a
quem se sente arredado por centenas de quilômetros, mas ao pé, de em meio a
vós, como a quem está debaixo do mesmo teto, e à beira do mesmo lar, em
colóquio de irmãos, ou junto dos mesmos altares, sob os mesmos campanários,
elevando ao Criador as mesmas orações, e professando o mesmo credo.
Direis que isto de me achar
assistindo, assim, entre os de quem me vejo separado por distância tão
vasta, seria dar-se, ou supor que se está dando, no meio de nós, um verdadeiro
milagre?
Será. Milagre do maior dos taumaturgos. Milagre
de quem respira entre milagres. Milagre de um santo, que cada qual tem no
sacrário do seu peito. Milagre do coração, que os sabe chover sobre a criatura
humana, como o firmamento chove nos campos mais áridos e tristes a orvalhada
das noites, que se esvai, com os sonhos de antemanhã, ao cair das primeiras frechas de oiro do disco solar.
Embora o realismo dos adágios teime no
contrário, tolerem-me o arrojo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios.
Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não. Não é certo, como corre mundo,
ou, pelo menos, muitas e muitíssimas vezes, não é verdade, como se espalha
fama, que "longe da vista, longe do coração".
O gênio dos anexins, aí, vai longe de andar
certo. Esse prolóquio tem mais malícia que ciência,
mais epigrama que justiça, mais engenho que filosofia. Vezes sem conta, quando
se está mais fora da vista dos olhos, então (e por isso mesmo) é que mais à
vista do coração estamos; não só bem à sua vista, senão bem dentro nele.
Não, filhos meus (deixai-me experimentar, uma
vez que seja, convosco, este suavíssimo nome); não: o
coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida. Há, nele,
mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. E o órgão da fé, o órgão
da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos d'alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê
em ausência, vê no invisível, e até no infinito vê. Onde pára o cérebro de ver,
outorgou-lhe o Senhor que ainda veja; e não se sabe até onde. Até onde chegam
as vibrações do sentimento, até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se
somem os vôos da crença: até Deus mesmo, indiviso como os panoramas íntimos do
coração, mas presente ao céu e à terra, a todos nós
presentes, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio, o músculo da vida e da
nobreza e da bondade humana.
Quando ele já não estende o raio visual pelo
horizonte do invisível, quando sua visão tem por limite a do nervo ótico, é que
o coração, já esclerótico, ou degenerescente, e
saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal, apenas oscila mecanicamente no
interior do arcaboiço, como pêndula de relógio
abandonado, que agita, com as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da
caixa. Dele se retirou a centelha divina. Até ontem lhe banhava ela de luz todo
esse espaço, que nos distancia do incomensurável desconhecido, e lançava entre
este e nós uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que o inundavam
de radiosa claridade, lá se foram, com o extinto cintilar das estrelas, as
entreabertas do dia eterno, deixando-nos, tão-somente, entre o longínquo
mistério daquele termo e o aniquilamento da nossa miséria desamparada, as
trevas de outro éter, como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério
do espaço.
Entre vós, porém, moços, que me estais
escutando, ainda brilha em toda a sua rutilância o
clarão da lâmpada sagrada, ainda arde em toda a sua energia o centro de calor,
a que se aquece a essência d'alma.
Vosso coração, pois, ainda estará incontaminado; e
Deus assim o preserve.
Metei a mão no seio, e
aí o sentireis com a sua segunda vista. Desta, sobretudo, é que ele nutre sua
vida agitada e criadora. Pois não sabemos que, com os antepassados, vive ele da
memória, do luto e da saudade? E tudo é viver no pretérito. Não sentimos como,
com os nossos conviventes, se alimenta ele na
comunhão dos sentimentos e índoles, das idéias e aspirações? E tudo é viver num
mundo, em que estamos sempre fora deste, pelo amor, pela abnegação, pelo
sacrifício, pela caridade. Não nos será claro que, com os nossos descendentes e
sobreviventes, com os nossos sucessores e pósteros,
vive ele de fé, esperança e sonho? Ora, tudo é viver, previvendo,
é existir, preexistindo, é ver, prevendo. E, assim, está o coração, cada ano,
cada dia, cada hora, sempre alimentado em contemplar o que não vê, por ter em
dote dos céus a preexcelência de ver, ouvir e palpar
o que os olhos não divisam, os ouvidos não escutam, e o tato não sente.
Para o coração, pois, não há passado, nem
futuro, nem ausência. Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é atualidade, tudo
presença. Mas presença animada e vivente, palpitante e criadora, neste regaço
interior, onde os mortos renascem, prenascem os vindoiros, e os distanciados se ajuntam, ao influxo de um
talismã, pelo qual, nesse mágico microcosmo de maravilhas, encerrado na breve
arca de um peito humano, cabe, em evocações de cada instante, a humanidade toda
e a mesma eternidade.
A maior de quantas distâncias logre a imaginação
conceber, é a da morte; e nem esta separa entre si os que a terrível apartadora de homens arrebatou aos braços uns dos outros.
Quantas vezes não entrevemos, nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem
cara? quantas vezes não a vemos assomar nos longes da
saudade, sorridente, ou melancólica, alvoroçada, ou inquieta, severa, ou
carinhosa,. trazendo-nos o bálsamo, ou o conselho, a
promessa, ou o desengano, a recompensa, ou o castigo, o aviso da fatalidade, ou
os presságios de bom agoiro? Quantas
nos não vem conversar, afável e tranqüila, ou pressurosa e
sobressaltada, com o afago nas mãos, a doçura na boca, a meiguice no semblante,
o pensamento na fonte, límpida, ou carregada, e lhe saímos do contato, ora
seguros e robustecidos, ora transidos de cuidado e pesadume, ora cheios de novas inspirações, e cismando, para
a vida, novos rumos? Quantas outras, não somos nós os que vamos chamar esses
leais companheiros de além-mundo, e com eles renovar a prática interrompida, ou
instar com eles por um alvitre, em vão buscado, urna palavra, um movimento do
rosto, um gesto, urna réstia de luz, um traço do que por lá se sabe, e aqui se
ignora?
Se não há, pois, abismo entre duas épocas, nem
mesmo a voragem final desta à outra vida, que não transponha a mútua atração de
duas almas, não pode haver, na mesquinha superfície do globo terrestre,
espaços, que não vença, com os instantâneos de presteza das vibrações
luminosas, esse fluido incomparável, por onde se realiza, na esfera das
comunicações morais, a maravilha da fotografia à distância no mundo positivo da
indústria moderna.
Tampouco medeia do Rio a São Paulo! Por que não
conseguiremos enxergar de um a outro cabo, em linha tão curta? Tentemos.
Vejamos. Estendamos as mãos, entre os dois pontos que a limitam. Deste àquele
já se estabeleceu a corrente. Rápida, como o pensamento, corre a emanação
magnética desta extremidade à oposta. Já num aperto se confundiram as mãos, que
se procuravam. Já, num amplexo de todos, nos abraçamos uns aos outros. Em São
Paulo estamos. Conversemos, amigos, de presença a presença.
Entrelaçando a colação do vosso grau com a
comemoração jubilar da minha, e dando-me a honra de vos ser eu paraninfo,
urdis, desta maneira, no ingresso à carreira que adotastes, um como vínculo
sagrado entre a vossa existência intelectual, que se enceta, e a do vosso
padrinho em letras, que se acerca do seu termo. Do ocaso de uma surde o arrebol
da outra.
Mercê, porém, de circunstâncias
inopinadas, com o encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência
se ajusta o remate dos meus cinqüenta anos de serviços à nação. Já o jurista
começava a olhar com os primeiros toques de saudade para o instrumento, que, há
dez lustros, lhe vibra entre os dedos, lidando pelo direito, quando a consciência
lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta, provadamente inútil,
pela grandeza da pátria e suas liberdades, no parlamento.
Essa remoção da metade total de um século de
vida laboriosa para o desentulho do tempo não podia consumar sem abalo sensível
numa existência repentinamente decepada. Mas a comoção foi salutar; porque o
espírito encontrou logo seu equilíbrio na convicção de que, afinal, me chegava
eu a conhecer a mim mesmo, reconhecendo a escassez de minhas reservas de energia,
para acomodar o ambiente da época às minhas idéias de reconciliação da política
nacional com o regimen republicano.
Era presunção, era temeridade, era inconsciência
insistir na insana pretensão da minha fraqueza. Só um predestinado poderia
arrostar empresa tamanha. Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e
ventos. Não os venci. Venceram-me eles a mim. Era natural. Deus nos dá sempre
mais do que merecemos. Já me não era pouco a graça (pela qual erguia as mãos ao
céu) de abrir os olhos à realidade evidente da minha impotência, e poder
recolher as velas, navegante desenganado, antes que o naufrágio me arrancasse
das mãos a bandeira sagrada.
Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o
que me estava ao alcance: a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de
atividade incansável, com que, desde os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho
servido até hoje.
Por isso me saí da longa odisséia sem créditos
de Ulisses. Mas, se o não soube imitar nas artes medrançosas
de político fértil em meios e manhas, em compensação tudo
envidei por inculcar ao povo os costumes da liberdade e à república as
leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam as sociedades, e
honram as nações.
Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral,
a verdade constitucional, a verdade republicana. Pobres clientes estas, entre
nós, sem armas, nem oiro, nem consideração, mal
achavam, em uma nacionalidade esmorecida e indiferente, nos títulos rotos do
seu direito, com que habilitar o mísero advogado a sustentar-lhes com alma, com
dignidade, com sobrançaria, as desprezadas reivindicações. As três verdades não
podiam alcançar melhor sentença no tribunal da corrupção política do que o Deus vivo no de Pilatos.
Quem por uma causa destas combateu, abraçado com
ela, em vinte e oito anos da sua Via Dolorosa, não se pode ter habituado a
maldizer, senão a perdoar, nem a descrer, senão a esperar. Descrer da cegueira
humana, sim; mas da Providência, fatal nas suas soluções, bem que (ao parecer)
tarda nos seus passos, isso nunca.
Assim que a bênção do paraninfo não traz fel.
Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito. Os maus só
lhe inspiram tristeza e piedade. Só o mal é o que o inflama em ódio. Porque o
ódio ao mal é amor do bem, e a ira contra o mal, entusiasmo divino. Vede Jesus
despejando os vendilhões do tempo, ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota. Não são o mesmo Cristo,
esse ensangüentado Jesus do Calvário e aqueloutro, o
Jesus iroso, o Jesus armado, o Jesus do látego
inexorável? Não serão um só Jesus, o que morre pelos
bons, e o que açoita os maus?
O padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas
Silvas:
"Bem pode haver ira, sem haver pecado:
Irascimini, et nolite peccare.
E às vezes poderá haver pecado, se não houver ira: porquanto a
paciência, e silêncio, fomenta a negligência dos maus, e tenta a
perseverança dos bons. Qui cum causa non irascitur,
peccat (diz um padre) patientia
enim irrationabilis vitia seminat, negligentiam nutrit, et non solum
malos, sed etiam bonos invitat ad
malum. Nem o irar-se nestes termos é contra a
mansidão: porque esta virtude compreende dois atos: um é reprimir a ira, quando
é desordenada: outro excitá-la, quando convém. A ira se compara ao cão, que ao
ladrão ladra, ao senhor festeja, ao hóspede nem festeja, nem ladra: e sempre
faz o seu ofício. E assim quem se agasta nas ocasiões, e contra as pessoas, que
convém agastar-se, bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente manso. Qui igitur (disse o
Filósofo) ad quae oportet, et quibus
oportet, irascitur, laudatur, esse que is mansuetus potest".
Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se,
as mais das vezes, rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e
necessária, constitui o específico da cura. Ora deriva da tentação infernal,
ora de inspiração religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e
paixões cruéis; mas não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade.
Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou
que o contraria, é ódio iroso, ou ira odienta. Quando
verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas
exaltação virtuosa; não é soberba, que explode, mas indignação que ilumina; não
é raiva desaçaimada, mas correção fraterna. Então,
não somente não peca o que se irar, mas pecará, não se irando. Cólera será; mas
cólera da mansuetude, cólera da justiça, cólera que reflete a de Deus, face
também celeste do amor, da misericórdia e da santidade.
Dela esfuzilam
centelhas, em que se abrasa, por vezes, o apóstolo, o sacerdote, o pai, o
amigo, o orador, o magistrado. Essas faúlhas da
substância divina atravessam o púlpito, a cátedra, a tribuna, o rosto, a
imprensa, quando se debatem, ante o país, ou o mundo, as grandes causas
humanas, as grandes causas nacionais, as grandes causas populares, as grandes
causas sociais, as grandes causas da consciência religiosa. Então a palavra se
eletriza, brame, lampeja, atroa, fulmina. Descargas sobre descargas rasgam o
ar, incendeiam o horizonte, cruzam em raios o espaço.
É a hora das responsabilidades, a hora da conta e do
castigo, a hora das apóstrofes, imprecações e anátemas, quando a voz do homem
reboa como o canhão, a arena dos combates da eloqüência estremece como campo de
batalha, e as siderações da verdade, que estala sobre
as cabeças dos culpados, revolvem o chão, coberto de vítimas e destroços incruentos, com abalos de terremoto.
Ei-la aí a cólera
santa! Eis a ira divina!
Quem, senão ela, há de expulsar do templo o
renegado, o blasfemo, o profanador, o simoníaco? quem, senão ela, exterminar da ciência o apedeuta,
o plagiário, o charlatão? quem, senão ela, banir da
sociedade o imoral, o corruptor, o libertino? quem,
senão ela, varrer dos serviços do Estado o prevaricador, o concussionário
e o ladrão público? quem, senão ela, precipitar do
governo o negocismo, a prostituição política, ou a
tirania? quem, senão ela, arrancar a defesa da pátria
à cobardia, à inconfidência ou à traição? quem, senão
ela, ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas? a cólera do Verbo da verdade, negado pelo poder da mentira? a cólera da santidade suprema, justiçada pela mais sacrílega
das opressões?
Todos os que nos dessedentamos nessa fonte, os
que nos saciamos desse pão, os que adoramos esse ideal, nela vamos buscar a
chama incorruptível. É dela que, ao espetáculo ímpio do mal tripudiante
sobre os reveses do bem, rebenta em labaredas a indignação, golfa a cólera em
borbotões das fráguas da consciência, e a palavra saí, rechinando, esbraseando, chispando como o
metal candente dos seios da fornalha.
Esse metal nobre, porém, na incandescência da
sua ebulição, não deixa escória. Pode crestar os lábios, que atravessa. Poderá
inflamar por momentos o irritado coração, de onde jorra. Mas não o degenera,
não o macula, não o resseca, não o caleja, não o endurece; e, no fundo, são da
urna onde tumultuavam essas procelas e donde borbotam essas erupções, não
assenta um rancor, uma inimizade, uma vingança. As reações da luta cessam, e
fica, de envolta com o aborrecimento ao mal, o relevamento dos males padecidos.
Nest'alma, tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes, nem
de agressões, nem de infamações, nem de preterições, nem de' ingratidões, nem
de perseguições, nem de traições, nem de expatriações perdura o menor rasto, a
menor idéia de revindita. Deus me é testemunha de que
tudo tenho perdoado. E, quando lhe digo, na oração
dominical: "Perdoai-nos, Senhor, as nossas dívidas, assim como nós
perdoamos aos nossos devedores", julgo não lhe estar mentindo; e a
consciência me atesta que, até onde alcance a imperfeição humana, tenho
conseguido, e consigo todos os dias, obedecer ao
sublime mandamento. Assim me perdoem, também, os a quem tenho agravado, os com
quem houver sido injusto, violento, intolerante, maligno, ou descaridoso.
Estou-vos abrindo o livro da minha vida. Se me
não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta versão rigorosa de
uma das suas páginas, com que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como ato de
fé, ou como conselho de pai a filhos, quando não como o testamento de uma
carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem, mas sempre o
evangelizou com entusiasmo, o procurou com fervor, e o adorou com sinceridade.
Desde que o tempo começou, lento, a me decantar
o espírito do sedimento das paixões, com que o verdor dos anos e o amargor das
lutas o enturbavam, entrando eu a considerar com
filosofia nas leis da natureza humana, fui sentindo quanto esta necessita da
contradição, como a lima dos sofrimentos a melhora, a que ponto o acerbo das
provações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então vim a perceber
vivamente que imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos seus
inimigos e desfortunas. Por mais desagrestes
que sejam os contratempos da sorte e as maldades dos homens, raro nos causam
mal tamanho, que nos não façam ainda maior bem. Ai de
nós, se esta purificação gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da
existência, não encontrasse a colaboração providencial da fortuna adversa e dos
nossos desafetos. Ninguém mete em conta o serviço contínuo, de que lhes está em
obrigação.
Diríeis, até que, mandando-nos amar aos nossos
inimigos, em boa parte nos quis o divino legislador entremostrar o muito, de
que eles nos são credores. A caridade com os que nos malquerem, e os que nos malfazem, não é, em bem larga escala, senão pago dos
benefícios, que, mal a seu grado, mas muito deveras, eles nos granjeiam.
Destarte, não equivocaremos a aparência com a
realidade, se, nos dissabores que malquerentes e malfazentes
nos propinam, discernirmos a quota de lucro, com que
eles, não levando em tal o sentido, quase sempre nos favorecem. Quanto é pela
minha parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor do que me acontece,
freqüentemente acaba o tempo convencendo-me de que não me vem das doçuras da
fortuna propícia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo,
principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte
madrasta. Que seria, hoje, de mim, se o veto dos meus adversários, sistemático
e pertinaz, me não houvesse poupado aos tremendos riscos dessas alturas,
"alturas de Satanás", como as de que fala o Apocalipse, em que tantos
se têm perdido, mas a que tantas vezes me tem tentado exalçar
o voto dos meus amigos? Amigos e inimigos estão, amiúde, em posições trocadas.
Uns nos querem mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o
mal.
Não poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo
dos amigos, e agradecer a malevolência dos opositores. Estes nos salvam, quando
aqueles nos extraviam. De sorte que, no perdoar aos inimigos, muita vez não vai
semente caridade cristã, senão também justiça ordinária e reconhecimento
humano. E, ainda quando, aos olhos de mundo, como aos do nosso juízo
descaminhado, tenham logrado a nossa desgraça, bem pode ser que, aos olhos da
filosofia, aos da crença e aos da verdade suprema, não nos hajam contribuído
senão para a felicidade.
Estes, senhores, será um saber vulgar, um saber
rasteiro, "um saber só de experiência feito".
Não é o saber da ciência, que se libra acima das
nuvens, e alteia o vôo soberbo, além das regiões siderais, até aos páramos indevassáveis do infinito. Mas, ainda assim, este
saber fácil mereceu a Camões o ter a sua legenda insculpida
em versos imortais; quanto mais a nós outros, bichos da terra tão pequenos, a
ninharia de ocupar divagações, como estas, de um dia, folhas de árvore morta,
que, talvez, não vinguem ao de amanhã.
Da ciência estamos aqui numa catedral. Não cabia
em um velho catecúmeno vir ensinar a religião aos seus bispos e pontífices, nem
aos que agora nela recebem as ordens do seu sacerdócio. E hoje é féria, ensejo
para tréguas ao trabalho ordinário, quase dia santo. Labutastes a semana toda,
o vosso curso de cinco anos, com teorias, hipóteses e sistemas, com princípios,
teses e demonstrações, com leis, códigos e jurisprudências, com expositores,
intérpretes e escolas. Chegou o momento de voe assentardes, mão por mão, com os
vossos sentimentos, de vos pordes à fala com a vossa consciência, de
praticardes familiarmente com os vossos afetos, esperanças e propósitos.
Eis ao que vem o padrinho, o velho, o abendiçoador, carregado de anos e tradições, versado nas
longas lições do tempo, mestre de humildade, arrependimento e desconfiança,
nulo entre os grandes da inteligência, grande entre os experimentados na
fraqueza humana. Que se feche, pois, alguns momentos, o livro da ciência; e
folheemos juntos o da experiência. Desaliviemo-nos
do saber humano, carga formidável, e voltemo-nos uma hora para este outro,
leve, comezinho, desalinhado, conversável, seguro, sem altitudes, nem
despenhadeiros.
Ninguém, senhores meus, que empreenda uma
jornada extraordinária, primeiro que meta o pé na estrada, se esquecerá de
entrar em conta com as suas forças, por saber se a levarão ao cabo. Mas, na
grande viagem, na viagem de trânsito deste a outro mundo,
não há possa, ou não possa, não há querer, ou não querer. A vida não tem mais
que duas portas: uma de entrar, pelo nascimento; outra de sair, pela morte.
Ninguém, cabendo-lhe a vez, se poderá furtar à entrada. Ninguém, desde que
entrou, em lhe chegando o turno, se conseguirá evadir à saída. E, de um ao
outro extremo, vai o caminho, longo, ou breve, ninguém o sabe, entre cujos
termos fatais se debate o homem, pesaroso de que
entrasse, receoso da hora em que saia, cativo de um e outro mistério, que lhe
confinam a passagem terrestre.
Não há nada mais trágico do que a fatalidade
inexorável deste destino, cuja rapidez ainda lhe agrava a severidade.
Em tão breve trajeto cada um há de acabar a sua
tarefa. Com que elementos? Com os que herdou, e os que
cria. Aqueles são a parte da natureza. Estes, a do
trabalho.
A parte da natureza varia ao infinito. Não há,
no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas
entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os
traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do
mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar. Tudo assim,
desde os astros, no céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no
espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados.
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se
desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é
que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do
orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com
igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites
humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar
a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se
eqüivalessem.
Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a
civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos
direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da
supremacia do trabalho, a organização da miséria.
Mas, se a sociedade não pode igualar os que a
natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode
reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança.
Tal a missão do trabalho.
Os portentos de que esta força é capaz, ninguém
os calcula. Suas vitórias na reconstituição da criatura mal dotada só se
comparam às da oração.
Oração e trabalho são os recursos mais poderosos
na criação moral do homem. A oração é o íntimo sublimar-se d'alma pelo contato com Deus. O trabalho é o
inteirar, o desenvolver, o apurar das energias do corpo e do espírito, mediante
a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre o mundo onde labutamos.
O indivíduo que trabalha acerca-se continuamente
do autor de todas as coisas, tomando na sua obra uma parte, de que depende
também a dele. O Criador começa, e a criatura acaba a criação de si própria.
Quem quer, pois, que trabalhe, está em oração ao
Senhor. Oração pelos atos, ela emparelha com a oração pelo culto. Nem pode ser
que uma ande verdadeiramente sem a outra. Não é trabalho digno de tal nome o do
mau; porque a malícia do trabalhador o contamina. Não é oração aceitável a do
ocioso; porque a ociosidade a dessagra. Mas, quando o
trabalho se junta à oração, e a oração com o trabalho, a segunda criação do
homem, a criação do homem pelo homem, semelha às vezes, em maravilhas, à
criação do homem pelo divino Criador.
Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não
fosse generoso, ninguém se creia malfadado, por lhe minguarem de nascença
haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresas, que se não possam esperar
da tenacidade e santidade no trabalho. Quem não conhece a história do padre Suárez, o autor do tratado "Das Leis e de Deus
Legislador" (De Legibus ac
Deo Legislatore),
monumento jurídico, a que os trezentos anos de sua idade ainda não gastaram o
conceito de honra das letras castelhanas? De cinqüenta aspirantes, que, em
1564, solicitavam, em Salamanca, ingresso à Companhia
de Jesus, esse foi o único rejeitado, por curto de entendimento e revesso ao
ensino. Admitido, todavia, a insistências suas, com a nota de indiferente,
embora primasse entre os mais aplicados, tudo lhe eram, no estudo, espessas
trevas. Não avançava um passo, Afinal, por consenso de todos, passava por invencível
a sua incapacidade. Confessou-a, por fim, ê]e mesmo,
requerendo ao reitor, o célebre padre Martin Gutierrez, que o escusasse da vida
escolar, e o entregasse aos misteres corporais de irmão coadjutor. Gutierrez
animou-o a orar, persistir, e esperar. De repente se lhe alagou de claridade a
inteligência. Mergulhou-se, então, cada vez mais no estudo; e daí, com
estupenda mudança, começa a deixar ver o a que era
destinada aquela extraordinária cabeça, até esse tempo submersa em densa escuridade.
Já é mestre insigne, já encarna todo o saber da
renascença teológica, em que brilham as letras de Espanha. Sucessivamente
ilustra as cadeiras de filosofia, teologia e cânones nas mais
famosas universidades européias: em Segóvia,
em Valhadolid, em Roma, em Alcalã,
em Salamanca, em Ávila, em Coimbra. Nos seus setenta
anos de vida, professa as ciências teológicas durante quarenta e sete, escreve
cerca de duzentos volumes, e morre comparado com Santo Agostinho e S.. Tomás,
abaixo de quem houve quem o considerasse "o maior engenho, que tem tido a
igreja" ; sendo tal a sua nomeada, ainda entre os protestantes, que deste
jesuíta, como teólogo e filósofo, chegou a dizer Grocio
que "apenas havia quem o igualasse".
Já vedes que ao trabalho nada é impossível. Dele
não há extremos, que não sejam de esperar. Com ele nada pode haver, de que
desesperar.
Mas, do século XVI ao século XX, o que as
ciências cresceram, é incomensurável. Entre o currículo da teologia e filosofia
no primeiro, e o programa de um curso jurídico, no segundo, a distância é
infinita. Sobre os mestres, os sábios e os estudantes de agora pesam montanhas
e montanhas mais de questões, problemas e estudos que quantos, há três ou
quatro séculos, se abrangiam no saber humano.
O trabalho, pois, vos há de bater à porta dia e
noite; e nunca vos negueis às suas visitas, se quereis honrar vossa vocação, e
estais dispostos a cavar nos veios de vossa natureza, até dardes com os
tesouros, que aí vos haja reservado, com ânimo benigno, a dadivosa Providência.
Ouvistes o aldrabar da mão oculta, que vos chama ao
estudo? Abri, abri, sem detença. Nem por vir muito
cedo, lho leveis a mal, lho tenhais à conta de importuna. Quanto mais matutinas
essas interrupções do vosso dormir, mais lhas deveis agradecer.
O amanhecer do trabalho há de antecipar-se ao
amanhecer do dia. Não vos fieis muito de quem esperta já sol
nascente, ou sol nado. Curtos se fizeram os dias, para que nós os dobrássemos,
madrugando. Experimentai, e vereis quanto vai do deitar tarde ao acordar cedo.
Sobre a noite o cérebro pende ao sono. Antemanhã, tende a despertar.
Não invertais a economia do nosso organismo: não
troqueis a noite pelo dia, dedicando este à cama, e aquela às distrações. O que
se esperdiça para o trabalho com as noitadas inúteis,
não se lhe recobra com as manhãs de extemporâneo dormir, ou as tardes de
cansado labutar. A ciência, zelosa do escasso tempo que nos deixa a vida, não
dá lugar aos tresnoites libertinos. Nem a cabeça já exausta, ou estafada nos
prazeres, tem onde caiba o inquirir, o revolver, o meditar do estudo.
Os próprios estudiosos desacertam, quando,
iludidos por um hábito de inversão, antepõem o
trabalho, que entra pela noite, ao que precede o dia. A natureza nos está
mostrando com exemplos a verdade. Toda ela, nos viventes, ao anoitecer, inclina
para o sono. A esta lição geral só abrem triste exceção os animais sinistros e
os carniceiros. Mas, quando se avizinha o volver da luz, muito antes que ela arraie a natureza, e ainda primeiro que alvoreça no
firmamento, já rompeu na terra em cânticos a alvorada, já se orquestram de
harmonias e melodias campos e selvas, já o galo, não o galo triste do luar dos
sertões do nosso Catulo, mas o galo festivo das madrugadas, retine ao longe a estridência dos seus clarins, vibrantes de jubilosa
alegria.
Ouvi, no poema de Jó,
a voz do Senhor, perguntando a seu servo, onde estava, quando o louvavam as
estrelas da manhã: "Ubi eras cum me laudarent simul astra matutina"? E
que têm mais as estrelas da manhã, dizia um grande escritor nosso,
"que têm mais as estrelas da manhã que as da tarde, ou as da noite,
para fazer Deus mais caso do louvor de umas que das outras? Não é ele o Senhor
do tempo, que deve ser louvado a todo o tempo, não só da luz, senão também das
trevas? Assim é: porém as estrelas da manhã têm esta vantagem que madrugam,
antecipam-se, e despertam aos outros, que se levantem a servir a Deus. Pois
disto é que Deus se honra, e agrada em presença de Jó".
Tomai exemplo, estudantes e doutores, tomai
exemplo das estrelas da manhã, o gozareis das mesmas vantagens: não só a de
levantardes mais cedo a Deus a oração do trabalho, mas
a de antecederdes aos demais, logrando mais para vós mesmos, e estimulando os
outros a que vos rivalizem no ganho bendito.
Há estudar, e estudar. Há trabalhar, e
trabalhar. Desde que o mundo é mundo, se vem dizendo que o homem nasce para o
trabalho: "Homo nascitur ad
laborem". Mas o trabalhar é como o semear, onde tudo vai muito das
sazões, dos dias e das horas. O cérebro, cansado e seco do laborar diurno, não
acolhe bem a semente: não a recebe fresco e de bom grado, como a terra
orvalhada. Nem a colheita acode tão suave às mãos do lavrador, quando o torrão
já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia.
Assim, todos sabem que para trabalhar nascemos.
Mas muitos somos os que ignoramos certas condições, talvez as mais elementares,
do trabalho, ou, pelo menos, mui poucos os que as praticamos. Quantos serão os
que acreditem que os melhores trabalhadores sejam os melhores madrugadores? que os mais estudiosos não sejam os que oferecem ao estudo
os sobejos do dia, mas os que o honram com as primícias da manhã?
Dirão que tais trivialidades, cediças e
corriqueiras, não são para contempladas num discurso acadêmico, nem para
escutadas entre doutores, lentes e sábios. Cada um se avém como entende, e faz
o que pode. Mas eu, nisto aqui, faço ainda o que devo. Porque, vindo pregar-vos
experiência, cumpria que relevasse mais a que mais sobressai na minha estirada
carreira de estudante.
Estudante sou. Nada
mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que
saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado
saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. Muitas lendas se têm inventado,
por aí, sobre excessos da minha vida laboriosa. Deram, nos meus progressos
intelectuais, larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos
pés mergulhados n'água fria.
Contos de imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca
recorri a ele como a estimulante cerebral. Nem uma só vez na
minha vida busquei num pedilúvio o espantalho
do sono.
Ao que devo, sim, o mais dos frutos do meu
trabalho, a relativa exabundância de sua fertilidade,
a parte produtiva e durável da sua safra, é às minhas madrugadas. Menino ainda,
assim que entrei ao colégio, alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume, e daí avante o observei,
sem cessar, toda a vida. Eduquei nele o meu cérebro, a ponto de espertar
exatamente à hora, que comigo mesmo assentava, ao dormir. Sucedia, muito
amiúde, encetar eu a minha solitária banca de estudo à
uma ou às duas da antemanhã. Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito; e
eu fazia apenas que lhe obedecia, tornando, logo após, àquelas amadas
lucubrações, as de que me lembro com saudade mais deleitosa e entranhável.
Tenho, ainda hoje, convicção de que nessa
observância persistente está o segredo feliz, não só das minhas primeiras vitórias
no trabalho, mas de quantas vantagens alcancei jamais levar aos meus
concorrentes, em todo o andar dos anos, até à velhice. Muito há que já não
subtraio tanto às horas da cama, para acrescentar às do estudo. Mas o sistema
ainda perdura, bem que largamente cerceado nas antigas imoderações.
Até agora, nunca o sol deu comigo deitado, e, ainda hoje, um dos meus raros e
modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente.
Mas, senhores, os que madrugam no ler, convém
madrugarem também no pensar. Vulgar é o ler, raro o refletir. O saber não está
na ciência alheia, que se absorve, mas, principalmente, nas idéias próprias,
que se geram dos conhecimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que
passam, no espírito que os assimila. Um sabedor não é armário de sabedoria
armazenada, mas transformador reflexivo de aquisições digeridas.
Já se vê quanto vai do saber aparente ao saber
real. O saber de aparência crê e ostenta saber tudo. O saber de realidade,
quanto mais real, mais desconfia, assim do que vai apreendendo, como do que
elabora.
Haveis de conhecer, como eu conheço, países,
onde quanto menos ciência se apurar, mais sábios florescem. Há, sim, dessas
regiões, por este mundo além. Um homem (nessas terras de promissão) que nunca
se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma, tido e havido é por corrente e moente no que quer que seja; porque assim o aclamam as
trombetas da política, do elogio mútuo, ou dos corrilhos
pessoais, e o povo subscreve a néscia atoarda. Financeiro,
administrador, estadista, chefe de Estado, ou qualquer outro lugar de ingente
situação e assustadoras responsabilidades, é, a pedir de boca, o que se diz mão
de pronto desempenho, fórmula viva a quaisquer dificuldades, chave de todos os
enigmas.
Tenham por averiguado que, onde quer que o
colocarem, dará conta o sujeito das mais árduas empresas e solução aos mais
emaranhados problemas. Se em nada se aparelhou, está em tudo e para tudo
aparelhado. Ninguém vos saberá informar por quê. Mas todo o mundo vo-lo dará
por líquido e certo. Não aprendeu nada, e sabe tudo. Ler, não leu. Escrever,
não escreveu. Ruminar, não ruminou. Produzir, não produziu. E um improviso
onisciente, o fenômeno de que poetava Dante: "In picciol
tempo gran dottor si feo".
A esses homens-panacéias, a esses empreiteiros
de todas as empreitadas, a esses aviadores de toda a encomenda, se escancelam os portões da fama, do poderio, da grandeza, e,
não contentes de lhes aplaudir entre os da terra a nulidade, ainda, quando Deus
quer, a mandam expor à admiração do estrangeiro.
Pelo contrário, os que se tem por notório e
incontestável excederem o nível da instrução ordinária, esses para nada servem.
Por quê? Porque "sabem demais". Sustenta-se aí que a competência
reside, justamente, na incompetência. Vai-se, até, ao incrível de se inculcar
"medo aos preparados", de havê-los como cidadãos perigosos, e ter-se
por dogma que um homem, cujos estudos passarem da craveira vulgar, não poderia
ocupar qualquer posto mais grado no governo, em país de analfabetos. Se o povo
é analfabeto, só ignorantes estarão em termos de o governar.
Nação de analfabetos, governo de analfabetos. É o que eles, muita vez às
escâncaras, e em letra redonda, por aí dizem.
Sócrates, certo dia, numa das suas conversações,
que O Primeiro Alcibíades nos deixa escutar ainda
hoje, dava grande lição de modéstia ao interlocutor, dizendo-lhe, com a
costumada lhaneza: "A pior espécie de ignorância é cuidar uma pessoa saber
o que não sabe... Tal, meu caro Alcibíades, o teu caso. Entraste pela política,
antes de a teres estudado. E não és tu só o que te vejas nessa condição: é esta
mesma a da mor parte dos que se metem nos negócios da república. Apenas excetuo
exíguo número, e pode ser que, unicamente, a Péricles, teu tutor; porque tem
cursado os filósofos".
Vede agora os que intentais exercitar-vos na
ciência das leis, e vir a ser seus intérpretes, se de tal jeito é que
conceberíeis sabê-las, e executá-las. Desse jeito; isto é: como as entendiam os
políticos da Grécia, pintada pelo mestre de Platão.
Uma vez, que Alcibíades discutia com Péricles,
em palestra registrada por Xenofonte, acertou de se
debater o que seja lei, e quando exista, ou não exista.
"- Que vem a ser lei?" indaga Alcibiades.
"- A expressão da vontade do povo",
responde Péricles.
"- Mas que é o que determina esse povo? O
bem, ou o mal?" replica-lhe o sobrinho.
"- Certo que o bem,
mancebo.
"- Mas, sendo uma oligarquia quem mande,
isto é, um diminuto número de homens, serão, ainda
assim, respeitáveis as leis?
"- Sem dúvida.
"- Mas, se a disposição vier de um tirano?
Se ocorrer violência, ou ilegalidade? Se o poderoso coagir o fraco? Cumprirá,
todavia, obedecer"?
Péricles hesita; mas acaba admitindo:
"- Creio que sim.
"- Mas então", insiste Alcibíades, "o tirano, que constrange os cidadãos a lhe acatarem os
caprichos, não será, esse sim, o inimigo das leis?
"- Sim; vejo agora que
errei em chamar leis às ordens de um tirano, costumado a mandar, sem persuadir.
"- Mas, quando um
diminuto número de cidadãos impõe seus arbítrios à multidão, daremos, ou não, a
isso o nome de violência?
Parece-me a mim",
concede Péricles, cada vez mais vacilante, "que, em caso tal, é de
violência que se trata, não de lei".
Admitido isso, já Alcibíades triunfa:
"- Logo, quando a multidão, governando,
obrigar os ricos, sem consenso destes, não será, também, violência, e não
lei?"
Péricles não acha que responder; e a própria
razão não o acharia. Não é lei a lei, senão quando assenta no consentimento da
maioria, já que, exigido o de todos, desiderandum
irrealizável, não haveria meio jamais de se chegar a uma lei.
Ora, senhores bacharelandos, pesai bem que vos
ides consagrar à lei, num país onde a lei absolutamente não exprime o
consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas,
mais impopulares e menos respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam, e
desmandam em tudo; a saber: num país, onde, verdadeiramente, não há lei, não há
moral, política ou juridicamente falando.
Considerai, pois, nas dificuldades, em que se
vão enlear os que professam a missão de sustentáculos e auxiliares da lei, seus
mestres e executores.
É verdade que a execução corrige, ou atenua,
muitas vezes, a legislação de má nota. Mas, no Brasil, a lei se deslegítima, anula e torna inexistente, não só pela
bastardia da origem, senão ainda pelos horrores da aplicação.
Ora, dizia S. Paulo que boa é a lei, onde se
executa legitimamente. Bona est lex, si quis ea legitime utatur. Quereria
dizer: Boa é a lei quando executada com retidão. Isto é: boa será, em havendo
no executor a virtude, que no legislador não havia. Porque só a moderação, a inteireza
e a eqüidade, no aplicar das más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar
da impureza, dureza e maldade, que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente, se
bem o entendo, pretenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei
má, quando inexecutada, ou mal executada (para o
bem), que a boa lei sofismada e não observada (contra ele).
Que extraordinário, que imensurável, que, por
assim dizer, estupendo e sobre-humano, logo, não será, em tais condições, o
papel da justiça! Maior que o da própria legislação. Porque, se dignos são os
juizes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis, em sendo
justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se
não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça.
De nada aproveitam leis, bem se sabe, não
existindo quem as ampare contra os abusos; e o amparo sobre todos essencial é o
de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua missão. "Aí temos as
leis", dizia o Florentino. "Mas quem lhes há de ter mão? Ninguém".
"Le leggi son, ma chi pon mano ad esse? Nullo".
Entre nós não seria lícito responder assim tão
em absoluto à interrogação do poeta. Na constituição brasileira, a mão que ele não via na sua república e em sua época, a mão
sustentadora das leis, aí a temos, hoje, criada, e tão grande, que nada
lhe iguala a majestade, nada lhe rivaliza o poder. Entre as leis, é a justiça
quem decide, fulminando aquelas, quando com esta colidirem.
Soberania tamanha só nas federações de molde
norte-americano cabe ao poder judiciário, subordinado aos outros poderes nas
demais formas de governo, mas, nesta, superior a todos.
Dessas democracias, pois, o eixo é a justiça,
eixo não abstrato, não supositício, não meramente
moral, mas de uma realidade profunda, e tão seriamente
implantado no mecanismo do regímen, tão praticamente
embebido através de todas as suas peças, que, falseando ele ao seu mister,
todo o sistema cairá em paralisia, desordem e subversão. Os poderes
constitucionais entrarão em conflitos insolúveis, as franquias constitucionais
ruirão por terra, e da organização constitucional, do seu caráter, das suas
funções, de suas garantias apenas restarão destroços.
Eis o de que nos há de preservar a justiça
brasileira, se a deixarem sobreviver, ainda que agredida, oscilante e mal
segura, aos outros elementos constitutivos da república, no meio das ruínas, em
que mal se conservam ligeiros traços da sua verdade.
Ora, senhores, esse poder eminencialmente
necessário, vital e salvador, tem os dois braços, nos quais agüenta a lei, em
duas instituições: a magistratura e a advocacia, tão velhas como a sociedade
humana, mas elevadas ao cem-dobro, na vida
constitucional do Brasil, pela estupenda importância, que o novo regímen veio dar à justiça.
Meus amigos, é para
colaborardes em dar existência a essas duas instituições que hoje saís daqui
habilitados. Magistrados ou advogados sereis. São duas
carreiras quase sagradas, inseparáveis uma da outra, e, tanto uma como a outra,
imensas nas dificuldades, responsabilidades e utilidades.
Se cada um de vós meter
bem a mão na consciência, certo que tremerá da perspectiva. O tremer próprio é
dos que se defrontam com as grandes vocações, e são talhados para as desempenhar. O tremer, mas não o descorçoar. O tremer,
mas não o renunciar. O tremer, com o ousar. O tremer, com o empreender. O
tremer, com o confiar. Confiai, senhores. Ousai.
Reagi. E haveis de ser bem sucedidos. Deus, pátria, e trabalho. Metei no regaço essas três fés,
esses três amores, esses três signos santos. E segui, com o coração puro. Não
hajais medo a que a sorte vos ludibrie. Mais podem que
os seus azares a constância, a coragem e a virtude.
Idealismo? Não: experiência da vida. Não há
forças, que mais a senhoreiem, do que essas. Experimentai-o, como eu o tenho
experimentado. Poderá ser que resigneis certas situações, como eu as tenho
resignado. Mas meramente para variar de posto, e, em vos sentindo incapazes de
uns, buscar outros, onde vos venha ao encontro o dever, que a Providência vos
havia reservado.
Encarai, jovens colegas meus, nessas duas
estradas, que se vos patenteiam. Tomai a que vos indicarem vossos
pressentimentos, gostos e explorações, no campo dessas nobres disciplinas, com
que lida a ciência das leis e a distribuição da justiça. Abraçai
a que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de vós mesmos. Mas não primeiro
que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister, e que
ainda não tendes, para eleger a melhor derrota, entre as duas que se oferecem à
carta de idoneidade, hoje obtida.
Pelo que me toca, escassamente avalio até onde,
nisso, vos poderia eu ser útil. Muito vi em cinqüenta anos. Mas o que constitui
a experiência, consiste menos no ver, que no saber observar. Observar com
clareza, com desinteresse, com seleção. Observar, deduzindo, induzindo, e
generalizando, com pausa, com critério com desconfiança. Observar, apurando, contrasteando, e guardando.
Que espécie de observador seja eu, não vo-lo
poderia dizer. Mas, seguro, ou não, no averiguar e discernir, - de uma
qualidade, ao menos, me posso abonar a mim mesmo: a de exato e consciencioso no
expender e narrar.
Como me dilataria, porém, numa ou noutra coisa,
quando tão longamente, aqui, já me tenho excedido em abusar de vós e de mim
mesmo?
Não recontarei, pois, senhores,
a minha experiência, e muito menos tentarei explaná-la. Cingir-me-ei,
estritamente, a falar-vos como falaria a mim próprio, se vós estivésseis em
mim, sabendo o que tenho experimentado, e eu me achasse em vós, tendo que
resolver essa escolha.
Todo pai é conselheiro natural. Todos os pais
aconselham, se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos seus conselhos. Os meus serão os a que me julgo obrigado, na situação em que
momentaneamente estou, pelo vosso arbítrio, de pai espiritual dos meus
afilhados em letras, nesta solenidade.
E à magistratura que vos ides votar?
Elegeis, então, a mais eminente das profissões,
a que um homem se pode entregar neste mundo. Essa elevação me impressiona
seriamente; de modo que não sei se a comoção me não atalhará o juízo, ou
tolherá o discurso. Mas não se dirá que, em boa vontade, fiquei aquém dos meus
deveres.
Serão, talvez, meras vulgaridades, tão singelas,
quão sabidas, mas ande o senso comum, a moral e o direito, associando-se à
experiência, lhe nobilitam os ditames. Vulgaridades, que qualquer outro orador
se avantajaria em esmaltar de melhor linguagem, mas que, na ocasião, a mim
tocam, e no meu ensoado vernáculo hão de ser ditas.
Baste, porém, que se digam com isenção, com firmeza,
com lealdade; e assim hão de ser ditas, hoje, desta nobre tribuna.
Moços, se vos ides medir com o direito e o crime
na cadeira de juizes, começai, esquadrinhando as exigências aparentemente menos
altas dos vossos cargos, e proponde-vos caprichar nelas com dobrado rigor;
porque, para sermos fiéis no muito, o devemos ser no pouco.
Qui fidelis est in minimo, et in majori fidel est; et qui in modico iniquus est, et in majori iniquus est".
Ponho
exemplo, senhores. Nada se leva em menos conta, na judicatura, a uma boa fé de
ofício que o vezo de tardança nos despachos e sentenças. Os códigos se cansam
debalde em o punir. Mas a geral habitualidade e a
conivência geral o entretêm, inocentam e universalizam. Destarte se incrementa
e demanda ele em proporções incalculáveis, chegando as
causas a contar a idade por lustras, ou décadas, em vez de anos.
Mas justiça atrasada não é justiça, senão
injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador
contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra
e liberdade. Os juizes tardinheiros são culpados, que
a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível
agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinqüente poderoso,
em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.
Não sejais, pois, desses magistrados, nas mãos
de quem os autos penam como as almas do purgatório, ou arrastam sonos
esquecidos como as preguiças do mato.
Não vos pareçais com esses outros juizes, que,
com tabuleta de escrupulosos, imaginam em risco a sua boa fama, se não evitarem
o contato dos pleiteantes, recebendo-os com má sombra, em lugar de os ouvir a todos com desprevenção,
doçura e serenidade.
Não imiteis os que, em se lhes oferecendo o mais
leve pretexto, a si mesmos põem suspeições rebuscadas, para esquivar
responsabilidades, que seria do seu dever arrostar sem quebra de ânimo ou de
confiança no prestígio dos seus cargos.
Não sigais os que argumentam com o grave das
acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados; como se,
pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não
houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de
vista a presunção de inocência, comum a todos os réus enquanto não liquidada a
prova e reconhecido o delito.
Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri,
se convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades
inoportunas, descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem
direito à proteção dos seus juizes, e a lei processual, em todo o mundo
civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada.
Não estejais com os que agravam o rigor das
leis, para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. Porque não há nada
menos nobre e aplausível que agenciar uma reputação malignamente obtida em
prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais.
Não julgueis por considerações de pessoas, ou
pelas do valor das quantias litigadas, negando as somas, que se pleiteiam, em
razão da sua grandeza, ou escolhendo, entre as partes na lide, segundo a
situação social delas, seu poderio, opulência e conspicuidade. Porque quanto
mais armados estão de tais armas os poderosos, mais inclinados é de recear que
sejam à extorsão contra os menos ajudados da fortuna; e, por outro lado, quanto
maiores são os valores demandados e maior, portanto, a
lesão argüida, mais grave iniqüidade será negar a reparação, que se demanda.
Não vos mistureis com
os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao
Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de
"fazendeiros". Essa presunção de terem, de ordinário, razão contra o
resto do mundo, nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou ao Estado.
Antes, se admissível fosse aí qualquer
presunção, havia de ser em sentido contrário; pois essas entidades são as mais
irresponsáveis, as que mais abundam em meios de corromper, as que exercem as
perseguições, administrativas, políticas e policiais, as que, demitindo
funcionários indemissíveìs, rasgando contratos
solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores de
tais atentados os que os pagam), acumulam, continuamente, sobre o tesoiro público terríveis responsabilidades.
No Brasil, durante o Império, os liberais tinham
por artigo do seu programa cercear os privilégios, já
espantosos, da Fazenda Nacional. Pasmoso é que eles,
sob a República, se cem-dobrem ainda, conculcando-se, até, a Constituição, em pontos de alto
melindre, para assegurar ao Fisco esta situação monstruosa, e que ainda haja
quem, sobre todas essas conquistas, lhe queira granjear a de um lugar de
predileções e vantagens na consciência judiciária, no foro íntimo de cada
magistrado.
Magistrados futuros, não vos
deixeis contagiar de contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário,
à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer
outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do
escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais
alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais
atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais mal defendidos, os que
suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na
condição com a míngua nos recursos.
Preservai, juizes de amanhã., preservai vossas
almas juvenis desses baixos e abomináveis sofismas. A ninguém importa mais do
que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações, e não conhecer
cobardia. Todo o bom magistrado tem muito de heróico em si mesmo, na pureza
imaculada e na plácida rigidez, que a nada se dobre, e de nada se tema, senão
da outra justiça, assente, cá embaixo, na consciência das nações, e culminante,
lá em cima, no juízo divino.
Não tergiverseis com as vossas
responsabilidades, por mais atribulações que vos imponham, e mais perigos a que
vos exponham. Nem receeis soberanias da terra: nem a do povo, nem a do poder. O
povo é uma torrente, que rara vez se não deixa conter pelas ações magnânimas. A intrepidez do juiz, como a bravura do soldado, o arrebatam,
e fascinam. Os governos investem contra a justiça, provocam e desrespeitam a
tribunais; mas, por mais que lhes espumem contra as sentenças, quando justas,
não terão, por muito tempo, a cabeça erguida em ameaça ou desobediência diante
dos magistrados, que os enfrentem com dignidade e firmeza.
Os presidentes de certas repúblicas são, às
vezes, mais intolerantes com os magistrados, quando lhes resistem, como devem,
do que os antigos monarcas absolutos. Mas, se os chefes das democracias de tal
jaez se esquecem do seu lugar, até o extremo de se haverem, quando lhes pica o
orgulho, com os juizes vitalícios e inamovíveis de hoje, coma se haveriam com
ou ouvidores e desembargadores d'El-Rei
Nosso Senhor, frágeis instrumentos nas mãos de déspotas coroados, - cumpre aos
amesquinhados pela jactância dessas rebeldias ter em mente que, instituindo-os
em guardas da Constituição contra os legisladores e da lei contra os governos,
esses pactos de liberdade não os revestiram de prerrogativas ultramajestáticas, senão para que a sua autoridade não
torça às exigências de nenhuma potestade humana.
Os tiranos e bárbaros antigos tinham, por vezes,
mais compreensão real da justiça que os civilizados e democratas de hoje. Haja
vista a história, que nos conta um pregador do século XVII.
"A todo o que faz pessoa de juiz, ou
ministro", dizia o orador sacro, "manda Deus que não considere na
parte a razão de príncipe poderoso, ou de pobre desvalido, senão só a razão do
seu próximo...Bem praticou esta virtude Canuto, rei
dos Vândalos, que, mandando justiçar uma quadrilha de salteadores, e pondo um
deles embargos de que era parente d'El-Rei,
respondeu: Se provar ser nosso parente, razão é que lhe façam a forca mais
alta".
Bom é que os bárbaros tivessem deixado lições
tão inesperadas às nossas democracias. Bem poderia ser que, barbarizando-se com
esses modelos, antepusessem elas, enfim, a justiça ao parentesco, e nos
livrassem da peste das parentelas, em matérias de governo.
Como vedes, senhores, para me não chamarem a mim
revolucionário, ando a catar minha literatura de hoje nos livros religiosos.
Outro ponto dos maiores na educação do
magistrado: corar menos de ter errado que de se não emendar. Melhor será que a
sentença não erre. Mas, se cair em erro, o pior é que se não corrija. E, se o
próprio autor do erro o remeditar, tanto melhor;
porque tanto mais cresce, com a confissão, em crédito de justo, o magistrado, e
tanto mais se soleniza a reparação dada ao ofendido.
Muitas vezes, ainda, teria eu de vos dizer: Não
façais, não façais. Mas já é tempo de caçar as velas ao discurso. Pouco agora
vos direi.
Não anteponhais o draconianismo
à eqüidade. Dados a tão cruel mania, ganharíeis, com razão, conceito de maus, e
não de retos.
Não cultiveis sistemas, extravagâncias e
singularidades. Por esse meio lucraríeis a néscia reputação de originais; mas
nunca a de sábios, doutos, ou conscienciosos.
Não militeis em partidos, dando à política o que
deveis à imparcialidade. Dessa maneira venderíeis as almas e famas ao demônio
da ambição, da intriga e da servidão às paixões mais detestáveis.
Não cortejeis a popularidade. Não transijais com
as conveniências. Não tenhais negócios em secretarias. Não delibereis por
conselheiros, ou assessores. Não deis votos de solidariedade com outros, quem
quer que sejam. Fazendo aos colegas toda a honra, que lhes deverdes,
prestai-lhes o crédito, a que sua dignidade houver direito; mas não tanto que
delibereis só de os ouvir, em matéria onde a confiança
não substitua a inspeção direta. Não prescindais, em suma, do conhecimento
próprio, sempre que a prova terminante vos esteja ao alcance da vista, e se
ofereça à verificação imediata do tribunal.
Por derradeiro, amigos de minha alma, por
derradeiro, a última, a melhor lição da minha experiência. De quanto no mundo
tenho visto, o resumo se abrange nestas cinco palavras:
Não há justiça, onde não haja Deus.
Quereríeis que vo-lo demonstrasse? Mas seria
perder tempo, se já não encontrastes a demonstração no espetáculo atual da
terra, na catástrofe da humanidade. O gênero humano afundiu-se
na matéria, e no oceano violento da matéria flutuam, hoje, os destroços da
civilização meio destruída. Esse fatal excídio está
clamando por Deus. Quando ele tornar a nós, as nações abandonarão a guerra, e a
paz, então, assomará entre elas, a paz das leis e da justiça, que o mundo ainda
não tem, porque ainda não crê.
À justiça humana cabe, nessa regeneração, papel
essencial. Assim o saiba ela honrar. Trabalhai por isso os que abraçardes essa carreira, com a influência da altíssima
dignidade que do seu exercício recebereis.
Dela vos falei, da sua grandeza e dos seus
deveres, com a incompetência de quem não a tem exercido. Não tive a honra de
ser magistrado. Advogado sou, há cinqüenta anos, e, já
agora, morrerei advogado.
E, entretanto, da advocacia no Brasil, da minha
profissão, do que nela, em experiência, acumulei, praticando-a, que me não será
dado agora tratar. A extensão já demasiadíssima deste
colóquio em desalinho não me consentiria acréscimo tamanho. Mas que perdereis,
com tal omissão? Nada.
Na missão do advogado também se desenvolve uma
espécie de magistratura. As duas se entrelaçam, diversas nas funções, mas
idênticas no objeto e na resultante; a justiça. Com o advogado, justiça
militante. Justiça imperante, no magistrado.
Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação
do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não
desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe f altar com a fidelidade, nem lhe
recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a
ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar
patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem
quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados,
nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das
causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um
grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do
amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real
do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com
os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade.
Amar a pátria, estremecer o próximo, guardar fé em Deus, na verdade e no bem.
Senhores, devo acabar.
Quando, há cinqüenta anos, saía eu daqui, na velha Paulicéia, solitária e
brumosa, como hoje saís da transfigurada metrópole do máximo Estado brasileiro,
bem outros eram este país e todo o mundo ocidental.
O Brasil acabava de varrer do seu território a
invasão paraguaia, e, na América do Norte, poucos anos antes, a guerra civil limpara
da grande república o cativeiro negro, cuja agonia esteve a pique de a soçobrar despedaçada. Eram dois prenúncios de uma
alvorada, que doirava os cimos do mundo cristão,
anunciando futuras vitórias da liberdade.
Mas, ao mesmo tempo, a invasão germânica alagava
terras de França, deixando-a violada, transpassada no coração e cruelmente
mutilada, aos olhos secos e indiferentes das outras potências e mais nações
européias, grandes ou pequenas.
Ninguém percebeu que se estavam semeando o cativeiro
e a subversão do mundo. Daí a menos de cinqüenta anos, aquela atroz exacerbação
do egoísmo político envolvia culpados e inocentes numa série de convulsões,
tal, que acreditaríeis haver-se despejado o inferno entre as nações da terra,
dando ao inaudito fenômeno humano proporções quase capazes de representar, na
sua espantosa imensidade, um cataclismo cósmico. Parecia estar-se desmanchando
e aniquilando o mundo. Mas era a eterna justiça que se mostrava. Era o velho
continente que principiava a expiar a velha política, desalmada, mercantil e
cínica, dos Napoleões, Metternichs
e Bismarcks, num ciclone de abominações inenarráveis,
que bem depressa abrangeria, como abrangeu, na zona
das suas tremendas comoções, os outros continentes, e deixaria revolvido o orbe
inteiro em tormentas catastróficas, só Deus sabe por quantas gerações além dos
nossos dias.
O Briareu do
inexorável mercantilismo que explorava a humanidade, o colosso do egoísmo
universal, que, durante um século, assistira impassível à entronização dos
cálculos dos governos sobre os direitos dos povos, o reinado ímpio da ambição e
da força rolava, e se desfazia, num desmoronamento pavoroso, levando por aí a
rojo impérios e dinastias, reis, domínios, constituições e tratados. Mas a
medonha intervenção dos poderes tenebrosos do nosso destino mal estava
começada. Ninguém poderia conjeturar ainda como e quando acabará.
Neste canto da terra, o Brasil "da
hegemonia sul-americana", entreluzida com a
guerra do Paraguai, não cultivava tais veleidades, ainda bem que, hoje, de todo
em todo extintas. Mas encetara uma era de aspirações
jurídicas e revoluções incruentas. Em 1888 aboliu a
propriedade servil. Em 1889 baniu a coroa, e organizou a república. Em 1907
entrou, pela porta de Haia, ao concerto das nações.
Em 1917 alistou-se na aliança da civilização, para empenhar a sua
responsabilidade e as suas forças navais na guerra das guerras, em socorro do
direito das gentes, cujo código ajudara a organizar na Segunda Conferência da
Paz.
Mas, de súbito, agora, um movimento desvairado
parece estar-nos levando, empuxados de uma corrente submarina, a um recuo
inexplicável. Diríeis que o Brasil de 1921 tendesse, hoje, a repudiar o Brasil
de 1917. Por quê? Porque a nossa política nos descurou dos interesses, e, ante
isso, delirando em acesso de frívolo despeito, iríamos
desmentir a excelsa tradição, tão gloriosa, quão inteligente e
fecunda?
Não; senhores, não seria
possível. Na resolução de 1917 o Brasil ascendeu à elevação mais alta de toda a
nossa história. Não descerá.
Amigos meus, não. Compromissos daquela natureza,
daquele alcance, daquela dignidade não se revogam. Não convertamos uma questão
de futuro em questão de relance. Não transformemos uma questão de previdência
em questão de cobiça. Não reduzamos uma imensa questão de princípios a vil
questão de interesses. Não demos de barato a essência eterna da justiça por uma
rasteira desavença de mercadores. Não barganhemos o nosso porvir a troco de um
mesquinho prato de lentilhas. Não arrastemos o Brasil ao escândalo de se dar em
espetáculo à terra toda como a mais fútil das nações, nação que, à distância de
quatro anos, se desdissesse de um dos mais memoráveis atos de sua vida,
trocasse de idéias, variasse de afeições, mudasse de caráter, e se renegasse a
si mesma.
Ó, senhores, não, não e não! Paladinos, ainda
ontem, do direito e da liberdade, não vamos agora mostrar os punhos contraídos
aos irmãos, com que comungávamos, há pouco, nessa verdadeira cruzada. Não
percamos, assim, o equilíbrio da dignidade, por amor de uma pendência de
estreito caráter comercial, ainda mal liquidada, sobre a qual as explicações
dadas à nação pelos seus agentes, até esta data, são inconsistentes e
furta-cores. Não culpemos o estrangeiro das nossas decepções políticas no
exterior, antes de averiguarmos se os culpados não se achariam aqui mesmo,
entre os a quem se depara, nestas cegas agitações de ódio a outros povos, a
diversão mais oportuna dos nossos erros e misérias intestinas.
O Brasil, em 1917, plantou a sua bandeira entre
as da civilização nos mares da Europa. Daí não se retrocede facilmente, sem
quebra da seriedade e do decoro, se não dos próprios interesses. Mais cuidado tivéssemos, em tempo, com os nossos, nos
conselhos da paz, se neles quiséssemos brilhar melhor do que brilhamos nos atos
da guerra, e acabar sem contratempos ou dissabores.
Agora, o que a política e a honra nos indicam, é
outra coisa. Não busquemos o caminho de volta à situação colonial. Guardemo-nos
das proteções internacionais. Acautelemos-nos das invasões econômicas.
Vigiemo-nos das potências absorventes e das raças expansionistas. Não nos
temamos tanto dos grandes impérios já saciados, quanto dos ansiosos por se
fazerem tais à custa dos povos indefesos e mal governados. Tenhamos sentido nos
ventos, que sopram de certos quadrantes do céu. O Brasil é a mais cobiçável das
presas; e, oferecida, como está, incauta, ingênua, inerme, a todas as ambições,
tem, de sobejo, com que fartar duas ou três das mais formidáveis.
Mas o que lhe importa, é que dê começo a
governar-se a si mesmo; porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva
em conta uma nacionalidade adormecida e anemizada na
tutela perpétua do governos, que não escolhe. Um povo
dependente no seu próprio território e nele mesmo sujeito ao domínio de
senhores não pode almejar seriamente, nem seriamente manter a sua independência
para com o estrangeiro.
Eia, senhores!
Mocidade viril! Inteligência brasileira! Nobre nação explorada! Brasil de ontem
e amanhã! Dai-nos o de hoje, que nos falta.
Mãos à obra da reivindicação de nossa perdida
autonomia; mãos à obra da nossa reconstituição interior; mãos à obra de
reconciliarmos a vida nacional com as instituições nacionais; mãos à obra de
substituir pela verdade o simulacro político da nossa existência entre as
nações. Trabalhai por essa que há de ser a salvação nossa. Mas não buscando
salvadores. Ainda vos podereis salvar a vós mesmos. Não é
sonho, meus amigos; bem sinto eu, nas pulsações do sangue, essa ressurreição
ansiada. Oxalá não se me fechem os olhos, antes de lhe ver os primeiros
indícios no horizonte. Assim o queira Deus.
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