O presidente
Lula beijou a mão de Jader Barbalho
João Ubaldo Ribeiro
O título acima não pretende, é claro, ser noticioso.
Todo mundo sabe, exceto algum possível ex-lulista,
que pode agora estar internado numa clínica para pacientes mentais com amnésia
traumática, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sim, aquele mesmo, beijou a
mão de Jader Barbalho, que desta vez não estava algemada. Na mesma ocasião,
gabou-se alegremente de haver dado uma aula de ciência política, não só com
esse gesto, mas com sua convivência amiga com muita gente de que até ele mesmo,
em sua possível condição de presidente mais traído 'na História deste país',
dizia ter-se afastado.
Não, o título é para reforçar uma família de
provérbios que me tem sido muito útil vida afora. Quem te viu, quem te vê; nada
como um dia depois do outro; o mundo dá muitas voltas; e, finalmente, os
dizeres proféticos do Barão de Itararé: 'Queres conhecer o Inácio? Coloca-o num
palácio'. Se me contassem sem confirmação, eu duvidaria, acharia má vontade excessiva
contra Lula. Se fosse eu a contar, um petista aguerrido poderia querer até me
justiçar, por crime de lesa santidade. Mas agora está aí, Lula beijando a mão
de Jader.
Deve ser a segurança da vitória que o faz ver-se no
direito de afrontar não só o seu passado, já suficientemente enxovalhado, como
aqueles a quem devia respeitar e nestes não incluo somente os que o têm em alta
conta ou o aprovam, mas todos os brasileiros. Deboche também não, curtir assim
com a cara da nação já está demais. Que é isso? Nenhum princípio vale mais?
Nenhuma convicção resiste à conveniência, a ponto de o presidente, segundo
expressão literal de petistas e mais ou menos dele também, beijar a mão que
mexe na merda? Pois, se não se pode fazer política
sem meter a mão na merda, muita merda
haverá de ter remexido Jader Barbalho e assim beijou merda
o presidente - e eu me julgava pelo menos cidadão de um país onde o presidente
não beija merda com tal desplante e desprezo por suas
convicções, hoje se vê que mentirosamente apregoadas. Nós todos somos
presididos por ele e merecemos respeito, não a desfaçatez de quem pode fazer o
que quiser, inclusive essa cafajestada, porque nele não pega nem pode pegar
nada, se bem que um dia depois do outro valha para todos e tudo.
Às vezes penso que ele está tendo um surto de mania,
com a virtual garantia de sua reeleição e com o fato de que agora, para o campo
dele, tudo que se diga ou faça contra ele é golpismo.
Se, por um acaso hoje visto como praticamente impossível, ele perdesse a
eleição, ah, seria golpe. Gozado que quem tem expressado idéias golpistas, bonapartistas, personalistas e antidemocráticas é ele, que
devaneia com a durabilidade de uma ditadura africana, acha moleza administrar a
China porque lá não há democracia e pensa até sonhadoramente num país sem
Congresso, pois não satisfazem as medidas provisórias que ele disse que não ia
usar, mas usa mais do que qualquer outro. As elites, contudo, não o suportam.
Que elites, meu Deus do céu, pela enésima vez? Só se foi alguma grã-fina que o
esnobou ou algum casamento de zilionária para o qual
ele não foi convidado, porque as elites não só se dão bem com o governo dele,
como vivem almoçando com ele e lhe tascando elogios
por todos os lados. Mas a realidade não importa, o que interessa são as frases
de efeito, para provar que a elite não tolera ser governada por um operário,
afirmação claramente desmentida pelos fatos, a não ser pela alegável
circunstância de que não há governo nenhum e, portanto, nada pode existir
contra ele. E serve para o caso da improbabilíssima
derrota dele, que, se sobrevier, terá sido porque as elites manipularam as
urnas eletrônicas. Golpismo óbvio. Ou seja, tudo o
que não interessar à reeleição de Lula é golpismo. E,
se ele perder, o povo (ele dispõe de apoio de movimentos organizados e
experientes em trazer o 'povo' para as ruas) virá pôr as coisas em seu devido
lugar.
Não fiquei nem um pouco impressionado com o caso do
dossiê ou dos ministros cujos telefones estavam grampeados. O caso do dossiê já
foi devidamente classificado com o rótulo oficial da campanha Lula para
qualquer oposição: golpismo. O presidente e seu
partido já emitiram o que podia tornar-se o moto do governo: não vi nada, não
sabia de nada. Além disso, nada mais chama a atenção, neste clima em que os
modernos palácios de Brasília parecem conter socavões sinistros, cafuas
enfumaçadas e malcheirosas, escondendo em cada canto
uma manobra delinqüente, furtando o país ou desmoralizando suas instituições.
De repente, aparecem figuras surgidas não se sabe de onde, com nomes estranhos
como Delúbio, Valdebran ou Gildemar, além de Freud, metidas nesse mesmo mundo penumbroso e miasmático a que nos vamos acostumando e
descobrimos que essas assombrações fazem parte da máquina que está no poder e
manda
Não, tudo isso é triste e inquietante, mas,
sinceramente, o beija-mão foi pior. Já desiludido com Lula e seu governo, já
desanimado diante destas eleições tão chochas, pelo menos acreditava em alguma
coisa. E acreditava que o presidente também acreditava em alguma coisa, não era
uma massa amoldável a qualquer fôrma, um cínico capaz de debochar de todos os
que puseram fé nele, até porque sabe que continuarão pondo fé, porque precisam
dessa religião que erigiram. Não, não acho que o presidente deu uma aula de
ciência política. Que aula eu sei que ele deu não poderia dizer aqui, porque
seria xingamento, injúria que não posso cometer contra ninguém, muito menos o
presidente da República. Mas acho que muitos de vocês também estão achando o
que eu acho que ele é. E agora podemos dizer que já vimos tudo neste mundo.