O DIREITO, A “LEI INJUSTA” E A FUNÇÃO DO OPERADOR DO DIREITO
Atahualpa
Fernandez
Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela
Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela
Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela
Universidade de Coimbra; Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology
da University of California,Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of
Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Research Scholar em Antropologia y Evolución
Humana do Laboratório de Sistemática Humana da Universidad de las Islas
Baleares/Espanha ;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular
da Unama/PAeCesupa/PA;Professor
Colaborador Honorífico da Universitat de les Illes Balears/Espanha; Procurador
do Trabalho (aposentado) ; Advogado.
Situar o problema acerca da função do operador do direito no
nosso tempo implica, de nossa parte, uma análise menos descritiva e mais
prospectiva, tendo como objetivo oferecer
linhas de reflexoes que convirjam num consenso possível. Não se trata
simplesmente de descrever o que aí está – ou ainda está -, mas do que está por
vir, do que parece possível vislumbrar esboçar-se no horizonte anunciador do
futuro , e que nem por essa razão é menos do nosso tempo, pois se são as
coordenadas de nossa vivência atual as condições de possibilidade do futuro, só
a assumida intencionalidade anticipante dá sentido e direção ao nosso caminhar.
De uma maneira geral, ao tratar-se do tema, é comum analisá-lo
tendo em conta três questoes, dirigidas tanto ao direito como ao operador
jurídico: pela primeira, pergunta-se diretamente pelo fundamento, pela validade
e legitimidade do Direito, enquanto tal ; em outra, interroga-se sobre a função
humano-social do jurídico e, finalmente, a última das questoes coloca-nos
perante o problema metodológico de seu processo de realização. Assim, pois, o
operador do direito terá um papel a desempenhar e o desempenhará bem, se o
direito for uma intenção válida e legítima que ele assuma na sua verdadeira e
indispensável função humano-social, para o realizar em termos metodologicamente
adequado na sua relação com o fazer viver uma norma jurídica na prática.
Pois bem, a perspectiva aquí adotada força-nos a restringir nosso
campo de análise à segunda das questoes: aquela que nos leva a refletir sobre a
tarefa a ser desempenhada pelo operador do direito em vista da função
humano-social do jurídico. E sendo a nossa uma perspectiva de historicidade, e
considerando que no tempo presente uma época humana se consuma e outra se
anuncia, deixaremos de dispor daquele sempre invocado tipo de operador que se
manifesta como o racionalizador do social mediante esquemas transacionais
impostos à ação.
Tais esquemas , quando não cedem à tentação de um dogmatismo
puramente sistemático e formalizante, contróem
um “demi monde” completamente
descomprometido com o fato de que é o tipo de natureza humana implicado em uma
determinada proposta teórica que define e circunscreve não somente as condições
de possibilidade das sociedades humanas como, e muito particularmente , o desenho do conjunto institucional e
normativo que regula as relações sociais comunitárias , assim como o caráter
das normas e dos valores produzidos pelo homem no percurso do incessante
processo de adaptação ao complicado e
cotidiano mundo em que plasma sua secular
existência.
De fato, pressupor este tipo de jurista e perguntar através
dele que tarefa terá o operador do direito no nosso tempo parece-nos como algo
culturalmente inválido e humanamente inútil, na medida em que se insiste em um
perfil de operador jurídico proclive ao automatismo, ao isolamente teórico, a uma ortodoxa rigidez
interpretativa e enclausurado ao muito
limitado esquema do silogismo interpretativo do direito positivo ( e isto
qualquer que seja o mérito ou demérito desse tipo como estrutura redutiva dos juristas oferecidos pela
história até os nossos dias).
Mas ainda porque aceitando a eternidade de um tipo de operador
jurídico ( e a correlativa concepção do próprio Direito), cuja viabilidade ( e
até mesmo validade e legitimidade) é hoje duvidosa, prepararíamos a tentação da renúncia
desesperada – “contra o impossível não há que lutar” – ou do isolamente orgulhoso de uma disciplina que não somente não teve ainda consciência de sua autarquia
intelectual, senão que teve um êxito relativo como ciência e até mesmo enquanto “arte” . Se bem pensado, até hoje
o direito segue à deriva, com sua
enorme massa de observações e construções
mal digeridas, com um considerável corpo de generalizações normativas e
com um mais que considerável número de
teorias e metodologias de nível médio entrelaçadas que se expressam em léxicos (técnicos ou não) imensuráveis
e babélicos.
Por outro lado, não se olvida que no próprio seio do Direito,
nas suas intenções e no método de seu pensamento , repercutem já, e fortemente,
as ondas revoltas da extraordinária proliferação de investigações e publicações
que nas duas últimas décadas dirigem seus interesses a reflexionar sobre as
relações entre as ciências sociais normativas e os espetaculares logros dos
recentes estudos provenientes das ciências cognitivas, da psicologia
evolucionista, da antropologia e biologia evolutiva, da primatologia, da neurociência, entre outras, e que tem posto em um sério aperto a defesa teórica
de uma inexorável fragmentação do território da
Ciência e de que não existe uma realidade independente de causas
sociais, senão que toda ela está socialmente construída .
E nem haveria de ser diferente , pois o Direito não poderia
decerto ficar imune a esta nova realidade inter e multidisciplinar ( a qual,
dito seja de passo, permanecem ainda, em sua miopia, inadvertidamente alheios uma boa parte dos cientistas sociais
e, em especial, em sua quase totalidade, os operadores do direito ) que não somente põe em cheque uma grande
porção dos logros teóricos tradicionais
das ciências sociais normativas – nestas incluída, claro está, a ciência
jurídica -, como , e principalmente,
oferece razões poderosas que poderão vir a dar conta da falsidade da
concepção comum da psicologia ( e da racionalidade) humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o
atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica , para a concepção acerca do homem enquanto causa e
fim do Direito e, conseqüentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de
dar “vida hermenêutica” ao direito
positivo.
Há , pois, que inserir aí mesmo, no próprio momento dessa mutação e dessa “crise”, o problema do
Direito, na tentativa de encontrar para ele uma solução à altura de nosso
tempo, sem excluir uma possível e necessária conversão do próprio operador
jurídico, nas suas intenções e nos seus métodos. Afinal, o ter sido não se
mostra como garantia de continuar a ser; é possível algo de novo, ainda que só
a novidade da ausência.
Depois, não será esta revisão da concepção do jurídico e das
suas intencionalidades metodológicas
algo de inteiramente novo e sem precedentes. Antes na história do Direito são
já discrimináveis pelo menos três dessas
profundas revisões. O que o jurista romano – referimo-nos apenas ao jurista
clássico, o jurista cidadão revestido de uma auctoritas pessoal, a quem socialmente se reconhecia jus
respondendi - via no Direito e como
o realizava não se confunde com o sentido jurídico e a metodología do jurista
medieval – o jurista do “direito comum”, um universitário, um acadêmico que
exibe uma qualificação, e que ao método empírico-indutivo dos romanos,
dirigidos por uma social invocação da aequitas
e da fides ,
opoe um método racional-dedutivo louvado numa sapiência doctoral de leges, rationes , autoritas e communis
opinio doctorum.
De igual modo, ao jurista medieval se recusa à identificação
com o jurista da Idade Moderna, muito embora do Direito como pressuposto, como
“dado” e conteúdo lógico, naturalmente se tenha inferido aquele outro postulado
metodológico fundamental que haveria de decidir acerca da concepção do jurídico
até o nosso tempo: o Direito concebido como uma norma, uma regra geral (uma
premissa) que fundamenta o realizar de um mero exercício semântico ou
lógico-dedutivo da própria norma
jurídica.
Em realidade, pouco há o que se dizer para recordamos o que
trouxe de “novo” à concepção do Direito e a seus métodos o jurista moderno,
isto porque, no atual esquema abstrato e processual, o operador do direito , na
grande maioría dos casos, é instado a receber as soluções do chamado direito
positivo, sem nenhuma contribuição crítica, multidisciplinar e criadora ao
mesmo. Ao operador jurídico parece não caber a responsabilidade ética de
contrastar a razoabilidade (ou a justiça) da norma jurídica interpretada, mas
sim de aplicá-la , ainda que ilegítima, inadequada , ultrapassada ou
arbitrária. Em síntese, ao invés de legítimo mediador da convivência ética, o operador
do direito ainda insiste em limitar sua atividade ao exercício da função de um
mero técnico dos dispositivos cogentes, onde a lei é uma normação
autosuficiente sobre a qual caiba um conhecimento objetivo e a partir do qual a
sua aplicação constitua um processo de mera subsunção.
Seja como for, se há em tudo isso uma lição a aprender, não
vemos outra senão a de que cada época histórica deu ( e dá ) ao problema do
Direito, que a si mesmo se pôs, uma resposta que era (ou é) a sua. Em cada uma
delas o homem se transcendeu à autopressuposição de um novo sentido espiritual
porque iluminou e fundamentou a solidariedade
da sua convivência ética na sociedade – que otra coisa não é, nem outro
objetivo se propoe o Direito. E este transcender foi sempre crítico num duplo significado:
enquanto reagiu em superação de um sentido já exangue e enquanto refundamentou
um sentido novo.
Não resta dúvidas de que a sua atual e inegável
desvinculação com relação às outras áreas de conhecimento , à realidade social
e suas práticas tem gerado como consequência o reforço da crise de legitimação
do próprio Direito. Pode-se dizer, inclusive, que o Direito vai anunciando um
ponto crítico de que ele poderá sair subvertido ou resgatado. Ou conserva o
isolamento teórico e o racionalismo formalizante que sempre o tem vindo a
constituir , e dele não restará mais do que uma carcaça ressequida e fria de um
dispositivo serventuário da autoridade estatal; ou ouve e faz seu o apelo de
afirmação da natureza humana, de liberdade , igualdade e emancipação que o
homem dirige ao mundo humano , e será também dele o futuro, pois neste caso o
Direito mais não será que o Direito que ao homem compete cumprir e reconhecer a
sua humanidade na “multidao dos homens”,
isto é, que permitrá a cada um viver com o outro na busca de uma
humanidade comum.
É esta, pois, a crise interna do Direito, aquela que não
apenas no futuro , mas já hoje o atinge. Crise das mais graves que o jurídico
alguma vez já sofreu: o Direito a correr o risco de ser negado como Direito; o
pensamento jurídico a recusar o Direito enquanto tal, como a sua intenção
problemática e essencialmente humana, e a diluir-se por isso em
intencionalidades ilegítimas e dogmáticas em que apaga a sua autonomia e,
portanto, a si mesmo se anula. E neste momento em que o velho está morto ou
morrendo e o novo ainda não pôde nascer ou impôr-se em sua integralidade, vem
surgindo uma variedade de sintomas mórbitos , decorrentes, fundamentalmente, da
quase completa desconexão do Direito com o resto das ciências e o seu
inconsequente e mais displicente descaso
com as características
(cognitivas , morais e emocionais) que
procedem da admirável natureza humana .
De fato, ao significar para o pensamento não apenas o
repúdio dos jusnaturalismos teológico e racionalista ( formas de dogmatismo
acrítico-sistemático e ahistórico que havia sem dúvida de se superar ) , mas
igualmente por envolver ainda um agnoscitismo axiológico, uma deliberada recusa
da intenção axiológica ( que teria como resultado uma cegueira metodológica
para o normativo, o próprio sacrifício intencional da dimensão normativa, a
essencial dimensão axiológico-normativa do jurídico e , assim, uma total
incompreensão dos problemas do fundamento e da validade da juridicidade
enquanto tal ) , o positivismo, confundindo Direito com o “direito posto” (pelo Estado), a legalidade vigente com a
legitimidade jurídica e sobrevalorizando não só o método algoritmo como também
a segurança em detrimento do comunitário projeto axiológico-jurídico, foi ( e ainda é) responsável por graves aberrações que acabaram por
atentar contra a pessoa humana .
Pode-se argumentar, é verdade, que esta situação é
excepcional e não deve, por isto, ser tomada
Muitos são, sem dúvida, os fatores de que dependem o cumprimento de um ou outro
dos dois destinos antes mencionados para o Direito, mas qualquer deles
dependerá fundamentalmente do papel que no drama venha assumir o operador jurídico, na medida em que
esteja comprometido com a tarefa de manter uma unidade de critérios de
valoração, em um esforço de busca de discursos jurídicos com potencial
capacidade de consenso e que, sobretudo, atendam ao princípio ético segundo o
qual o Direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam
sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria
humana : que não se produza sofrimento quando seja possível preveni-lo, e que o
sofrimento inevitável se minimize e afete com moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos.
Neste particular , estamos firmemente convencidos de que o
êxito ou o fracasso do Direito depende em grande medida do modo como os
operadores jurídicos que interpretam e aplicam as normas sejam capazes de
incorporar uma adequada concepção acerca da natureza humana em princípios,
valores, métodos e decisões jurídicas. Compreender a natureza humana , sua
limitada racionalidade , suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor
caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que,
reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver em uma comunidade de
homens livres e iguais unidos por um comum sentimento de legitimidade e de
submetimento ao Direito e em pleno e permanente exercício de sua cidadania.
Agora, para que se possa definir e delimitar esse
papel a ser assumido pelos operadores do direito, parece razoável analisar,
antes de tudo, em que consiste a função
do Direito. E neste particular a resposta não pode ser outra : o direito não é
mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa ( cada vez mais complexa,
mas sempre notavelmente deficiente )
empregada para articular argumentativamente
( de fato, nem sempre com justiça
) , por meio da virtude da prudência , os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens
contróem estilos aprovados de interação e estrutura social. Um artefato
cultural que deve ser manipulado para desenhar um modelo normativo e
institucional que evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a dominação e a
interferência arbitrária recíprocas e, na mesma medida, garantindo uma certa
igualdade material , permita, estimule e
assegure a titulariedade e o exercício de direitos ( e o cumprimento de
deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência
dos cidadãos como indivíduos plenamente livres[1].
Essa função do jurídico nos permite extrair algumas
consequências que podem ser resumidas nas seguintes fórmulas: “o homem há de
sempre afirmar-se ao homem”, nas relações e situações horizontais comutativas;
e, “o homem há de sempre afirmar-se ao poder”, nas relações e situações
verticais organizatórias e impositivas. O sentido destas fórmulas é aquele que
elas obtem referindo-se diretamente à idéia de Direito como um artefato
cultural que não terá de modo algum de pensar-se como heteronomia
abstrato-alienante, mas antes como algo que, fundando-se no próprio ser da
pessoa, se revela e atua como uma dimensão necessária e autêntica da ética
autonomia humana. Com efeito , a medida
do Direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza
resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão
também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de
nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.
Praticamente significa dizer que, por um lado, jamais alguém
poderá ver no “outro” apenas o objeto de um interesse ou de uma dependência,
mas sempre haverá de ver nele um sujeito[2] em uma
relação de sujeitos – melhor, em uma relação de pessoas; e, por outro lado, que
o estatuto de direitos e deveres que se pretenda impor só será válido e
legítimo se o indivíduo, como pessoa, puder reconhecer-se nesse estatuto. Dito
de outro modo, que o Direito moderno
segue exigindo um momento de incondicionalidade que obedece ao princípio de que
o ser humano , enquanto ponto de partida e chegada do fenômeno jurídico, não
poderá ser considerado apenas como objeto ou fator fungível num plano de
eficácia política ou econômica, senão que deverá ser sempre considerado como um
valor último, um in-divíduo livre, separado e autônomo , a implicar isso não
somente que ele (o indivíduo) não aceitará nunca ser preterido (ser calado na
voz responsável de sua autonomia) senão que, e muito particularmente, nenhuma
imposição será legítima, quaisquer que sejam as justificações para ela
aduzidas, se não estiver eticamente fundada, isto é, se não puder
fundamentar-se perante as intuições e emoções (morais) da pessoa moral.
Significa afirmar, em suma, que a idéia de Direito , sendo este
a medida do poder, é a idéia do homem
pessoal, ou então não é nada. Aliás , não é outra coisa que exprimem hoje os
proclamados “direitos humanos”. Tudo isso a dizer-nos, numa palavra, que a
verdadeira intenção do Direito , que somente pode ser pensado através
da pessoa e para a pessoa , é a de : a) negativamente, impedir o homem do
esquecimento de sí próprio ; b) positivamente, de o afirmar no seu ser e,
assim, no seu incondicional valor ; e, c)
positiva e negativamente , de plasmar e realizar historicamente as expectativas
valorativas e normativas de uma comunidade de indivíduos (ante a qual o
discurso jurídico deve apresentar-se justificado e cuja qualidade será medida
por sua humanidade, pela precisão de sua adesão à natureza humana) que, como estratégias sócio-adaptativas,
sirvam para iluminar , fundamentar e
constituir determinado agrupamento
social em uma comunidade verdadeiramente ética.
Todavía esta intenção, para poder ser cumprida , envolve
exigências específicas. Pois se essa intenção (o Direito) não deve ser
concebida como um “dado” que o jurista tenha de receber, mas uma praxis social
ou tarefa problemática que o concita a um esforço e a uma responsabilidade, não
pode ela prescindir de um mediador que, assumindo essa intenção axiológica , haja de ser o sujeito qualificado deste ato , isto é,
da tarefa concreta a realizar historicamente e que é projetada no contexto
econômico, político e sócio-cultural segundo as expectativas e as necessidades
humanas de cada época.
É certo que o sujeito da juridicidade é o próprio homem
enquanto sujeito de vínculos sociais relacionais e membro de uma determinada
comunidade ética, mas esta não será suscetível de realizar-se como tal se o
próprio projeto axiológico não lhe for explicitado e fundamentado
críticamente. Se a comunidade subsiste na sua existência histórica, o projeto e
a totalização axiológicos serao sempre uma intencionalidade críticamente
valorativa e espiritual. E esta parece ser justamente a verdadeira função,
papel e tarefa que cabe ao operador jurídico: a de assumir críticamente a idéia
do Direito e de realizá-la concreta e historicamente em um determinado contexto
sócio-cultural , na explicitação constituinte do próprio Direito e do projeto
axiológico que a sociedade a si mesma se poe , isto é, de uma atividade intermediada pelo iniludível manejo dos
valores que articulam e animam as estruturas normativas , os fatos sociais e a
própria idéia do Direito.
O operador do direito como o chamado a servir o próprio povo,
para ajudá-lo a traduzir e a compor em termos de razão essa instintiva e mesmo
indisciplinada aspiração de justiça que o move para o futuro, e que, por essa
razão, não será o operador do direito apenas um “perito” da técnica jurídica,
mas um vivo vigilante intérprete dos tempos, que tanto melhor sabe cumprir a
sua função quanto melhor alcance sentir a exigência humana da história e a
traduzí-la em fórmulas apropriadas de uma ordenada e ética convivência
(Calamandrei). Ele ( o operador do direito) deixa de ter apenas uma função técnico-metodológica para
assumir e desempenhar uma verdadeira função transformadora e axiológica
enquanto mediador na comunidade e para a comunidade da idéia de Direito e da
Justiça que o fundamenta. Em poucas palavras, ele passa a ser o sujeito qualificado
daquele ato em que o Direito terá de ser atuado eticamente para ser direito
justo.
Daí que, sem prejuízo do preceptivo conhecimento do ordenamento jurídico vigente
, o operador do direito deve , antes de tudo, estar apto para compreender que a atividade
hermenêutica se formula precisamente a partir de uma posição antropológica e
põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o
ponto de vista do homem e de sua natureza será possível ao operador jurídico representar o sentido e a função do Direito
como unidade de um contexto vital, ético e cultural: o homem , ponto de partida
e chegada do fenômeno jurídico, desenhado para a cooperação, o diálogo e a
argumentação , e que, em seu "existir com" e situado em um determinado
horizonte histórico-existencial, pede continuamente aos outros, cuja alteridade
interioriza, que justifiquem a legitimidade de suas eleições aportando as razões que as subjacem e as
motivam.
Por certo que tal função implica inevitavelmente uma grande
responsabilidade, posto que ao operador do direito já não mais lhe será lícito
e legítimo elidir ou dissimular o dever de dizer
não às situações e relações
intoleravelmente injustas que os homens entre si ou o poder perante eles
se proponha a criar ou impor[3]. E neste particular, tomo como critério de
exemplo o tratamento a ser dado ao problema da denominada “lei injusta”.
É este um problema que aquí não se pode considerar na
totalidade de suas dimensões. Assim que me limitarei apenas a dizer que a lei
injusta será toda a norma positiva que
não realize ou não permita realizar
concretamente a idéia de Direito. Assim, não tem qualquer caráter jurídicamente
vinculante ( carecem totalmente de legitimidade e de obrigatoriedade ) tanto as
normas que porventura recusem a dignidade de personalidade moral a qualquer
pessoa, grupo ou classe, isto é , que lhes excluam a qualidade de sujeitos
autônomos de Direito ( com os direitos e deveres implicados pela sua válida e
legítima integração na comunidade ) para os reduzirem a meros objetos de coação política , econômica ou administrativa
, como as normas que lhes definam um estatuto de direitos e deveres que não
esteja fundado no sentido axiológico de uma comunidade que a todos autonoma e
totalizantemente integre .
Nestes casos, e ainda que nos encontremos na presença de
mandados emitidos por um legislador formalmente habilitado e acompanhados por
uma organizada garantia coativa, o que se nos oferece são autênticas perversões
do ato de legislar. Não podem, com efeito, considerar-se de outro modo as
normas abertamente contrárias à idéia de Direito e, portanto, violadoras
daquela mesma função axiológico-normativa em que terao de justificar-se como
normas jurídicas válidas e legítimas.
Assim que parece haver um sentido
comum de que o Direito moderno segue exigindo um momento de
incondicionalidade que obedece a sua necessária vinculação com a moral , ou
seja, de que não se tornou exclusivamente instrumental como pretendem algumas
variantes do positivismo jurídico. De fato, é essa pretensão de correção moral
que permite distinguir entre o Direito
e a força bruta , que permite distinguir (ou não) entre a
ordem de um delinquente (“a bolsa ou a vida”) e a ordem de cobrança de uma determinada
contribuição , enfim, que permite considerar o Direito como uma estratégia
sócio-adaptativa, uma praxis social destinada a gerar discursos jurídicos
materialmente justos e com potencial capacidade de consenso para a solução de
determinados problemas práticos relativos aos vínculos sociais relacionais
elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de
interação e estrutura social.
Essa inerente pretensão de correção formulada pelo Direito
compreende uma pretensão de justiça que, em essência, nada mais é do que a
correção com respeito a liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, com a
eqüitativa distribuição e equilíbrio entre essas três grandes virtudes
ilustradas. Com efeito, o operador do direito, em toda sua cotidiana atividade,
não pode prescindir dessa dimensão axiológica. E porque as
perguntas sobre a justiça são perguntas morais, o operador jurídico que realiza distribuições
e equilíbrios incorretos comete, por essa via, uma falha moral e a pretensão de
correção transforma essa deficiência moral em deficiência jurídica : as normas
perdem seu carater jurídico se sobrepassam certos limites de injustiça.
Quando as normas negam conscientemente a vontade de justiça,
quando os princípios, os direitos e as garantias consagradas são
arbitrariamente violados, carecem tais normas de legitimidade e validez,
pois não se pode conceber o Direito, inclusive o direito legislado, de outra
maneira que não esteja destinado a servir a justiça. E quando a injustiça
não é oportunamente eliminada pelo legislador, corresponde ao operador do direito
o dever e a coragem de deixar de efetivá-la, de negar o pretenso caráter
jurídico das normas arbitrariamente impostas. Esse o papel que cabe ao operador
do direito na sua praxis hermenêutica.
Dito de outra forma,
parece ser que a única atitude legítima em face de uma lei injusta é a
de recusar a sua aplicação: a lei injusta faz surgir no pensamento jurídico em
geral o poder e o dever de lhe recusar validade e aplicação automática, de
interpretá-la e decidir de tal modo que ela acabe por ter uma finalidade justa,
isto é , cada norma sendo submetida a um critério de justiça material de sua
aplicação em cada caso concreto . Afinal, querendo ou não, as normas são, em
muito boa medida, manifestações de intuições e emoções morais (de raiz
biológica e culturais) compartidas por um determinado grupo, partindo não da
idéia de “imperator”, mas sim da
comunidade ética na qual se inserta o sujeito-intérprete .
A lei ( essa ferramenta cultural
e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial
capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano ) não é
simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas que as
pessoas seguem. Em vez disso, a lei representa a formalização de regras
comportamentais, sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que
refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais
àqueles que as seguem : quando as pessoas não reconhecem ou não acreditam
nesses benefícios potenciais, as leis são, com frequência, não somente ignoradas ou desobedecidas ( pois
carecem de legitimidade e de contornos culturalmente aceitáveis em termos de uma comum, consensual
e intuitiva concepção de justiça ), senão que seu cumprimento fica condicionado
a um critério de autoridade que lhes impoem por meio da “força brura”. (M. Gruter,1991)[4].
Com efeito, dispomos de normas de conduta bem afinadas porque
nos permitem predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito a
reação dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam
grande parte de nossas intuições e
emoções morais, não podem ser construções arbitrárias, senão que devem servir ao importante
propósito de, por meio de juizos de valor, tornar a ação coletiva possível – e
parece razoável admitir que os seres humanos encontram satisfação no fato de
que as normas sejam compartidas e cumpridas pelos membros da comunidade, porque
legítimas.
Mas podem operadores jurídicos
educados no positivismo jurídico até aqui dominante, na aplicação do
Direito, ter a pretensão de não desprezar a vinculação
necessária entre Direito e Justiça?
Parece que sim, desde que se
considere que essa vinculação ( entre o Direito e a Moral) está fundada na
idéia de que toda a atividade do sujeito-intérprete deve estar permeada pela
pretensão de que seus discursos jurídicos sejam moralmente corretos e justos. A
ela (atividade) lhe corresponde a intenção e o dever jurídico de decidir
corretamente, de que embora necessário , não é suficiente para resolver um
problema jurídico o simples recurso a artifícios legais , ao muito
limitado esquema de silogismo interpretativo ou de coerência lógico-formal. A
virtude e a independência do operador do direito não é outra coisa que a
manifestação da autonomia do Direito, comprometido eticamente com a
criação de um modelo sócio-cultural e institucional livre, justo e solidário
que permita a cada cidadão, frente a qualquer interesse espúrio do Estado ou de
qualquer outro agente social, viver com o outro na busca de uma humanidade
comum.
O ato de decidir contra qualquer forma de arbitrariedade ou
interferência injustificada carrega consigo a virtuosa intenção de
mudar um estado de coisas de conformidade com algo que se
pretenda justo : com a idéia de que o homem, mesmo quando se converte
em objeto de ordens estatais supraindividuais,
sempre deve ser respeitado como
um fim em si mesmo e não como instrumento de episódicos e injustificados
interesses políticos ou de conveniência
econômica, isto é, de que na qualidade de sujeito destinatário do ato imperativo
do Estado (lei) possa participar legitimamente de sua formação por meio de eficazes
medidas de controle, a fim de
evitar que o abuso de autoridade ou a falta de correção moral por parte
do operador do direito rompa os
limites que asseguram o âmbito prático
da interpretação e aplicação justa.
E assim deve ser porque na grande maioria das vezes estao
submetidas a juízo a virtude na aplicação da Constituição, a realização da
justiça concreta , a integridade do Direito
e a própria idéia de um
operador jurídico autônomo e independente. Somente atuando guiado por uma justa
e virtuosa pretensão de correção poderá
vir o operador do direito a
afirmar-se como mediador
preocupado com a justiça e com a Constituição de uma República , não
somente controlando toda a desregrada maquinária estatal em suas funções
administrativas e legais , senão que também assegurando de forma efetiva os
princípios , direitos e garantias legítimamente consagrados.
É preciso reconhecer
que não somente desde a lex corrupta insensatamente aplicada provém o injusto
real como na
aplicação do Direito intervêm , ademais da razão, os sentimentos e as
emoções: para ser um bom operador
jurídico não basta com ter capacidade
argumentativa ( com conhecer o Direito vigente) , senão que é necessário ter
outras virtudes como sentido da justiça
, compaixao e valentia. Afinal, o que dá
sentido ao Direito não pode ser outra coisa
que a aspiração
à justiça ou, para dizer em termos mais modestos e mais
realistas: a luta contra toda e qualquer
forma de injustiça.
E nem se objete possa a idéia da
segurança ou da certeza jurídica – sempre aqui invocada- constituir-se em
argumento suficiente e necessário de oposição a esta conclusão, uma vez que não
é uma qualquer “injustiça” a que determina o rigoroso sentido da lei injusta,
mas somente aquela que envolva a negação da própria idéia de Direito. Depois,
se a segurança e a certeza jurídica têm decerto valor apenas na medida em que
podem contribuir para a realização da objetividade e previsibilidade em uma
ordem jurídica , deixam totalmente de ser fundamento de obrigatoriedade quando
invocadas somente para encobrirem situações intoleravelmente injustas ou quando
são postas a serviço do arbítrio , da tirania e dos devaneios políticos.A
obrigatoriedade e o valor da segurança e certeza jurídica cessam onde cessa
toda a legitimidade jurídica , isto é,
logo que deixem de contribuir para a concreta realização da idéia de Direito.
Não é, definitivamente, em função da segurança e da certeza que se afere o
direito justo , senão em função do direito justo que se afere a segurança e a
certeza jurídica.
Com efeito, as situações de
tensão entre a segurança jurídica e a justiça constituem um dos aspectos mais
dramáticos da experiência jurídica. Por vezes, são impostas à justiça, pelo
menos à justiça estrita do caso singular, certos sacrifícios em nome da
segurança jurídica , como , por exemplo, por força do princípio da coisa
julgada ou do instituto da prescrição. Mas certamente não é de se admitir que a
pretexto da segurança e da certeza jurídica se chegue a um grau intolerável de
sacrifício da justiça, sob pena da ordem jurídica se esvaziar de legitimidade e
se desnaturar. A paz, a ordem estável, a liberdade, a igualdade , o grau
razoável de certeza e de estabilidade, são obras da justiça, cujo fundamento
radica na pessoa humana.
Um puro sistema de segurança e
certeza jurídicas , indiferente ou contrário à justiça, constitui por si mesmo
a negação do próprio Direito. Daí porque, no plano metodológico, faz-se sentir
a necessidade de superar os unitelarismos – quer do legalismo estrito, que
privilegia a segurança em prejuízo da justiça, quer do judicialismo casuístico,
que favorece a justiça com menoscabo das exigências essenciais de segurança -,
mediante soluções que atendam equilibradamente à norma e ao caso, assim como às
reclamações desses dois valores fundamentais do Direito, isto é, mediante
soluções que tratem de alcançar um estado de coisas onde a justiça e a
segurança jurídica em presença alcancem seu mais alto grau de vigência e
eficácia possível.
Isto é, que a atividade
hermenêutica, da qual não se pode excluir a dimensão emocional e de
subjetividade do juízo, não se configure como produção ex nihilo, que não seja somente uma circunstância de produção
subordinada à lei, senão que deve ser concebida como uma praxis social
destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que , garantindo uma certa
igualdade material , permita, estimule e assegure que a titularidade e o
exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam sacrificados em
função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do
Estado ou de qualquer outro agente social.
Ocorre que, para exercer esta postura metodológica e
principalmente para dizer este “não” – parece evidente – não será suficiente
que o operador do direito tenha a coragem de declará-lo ; é nessário que tenha
o poder de fazer como o declara. E esse poder somente o terá atualmente o
operador jurídico no desempenho de uma função judicial. É que embora esta seja
a função de todo o operador do direito, este não poderá cumprir (de forma
vinculante) essa tarefa se não lograr
ele mesmo impor-se institucionalmente ,
já que o jus respondendi pessoal dos
romanos não é mais do nosso tempo. Depois, tendo deixado a legislação de poder
considerar-se hoje como uma manifestação de vontade autêntica e exclusivamente
comunitária, para ser mais bem a
imposição prescritiva de uma ideologia partidária em veste de governo, somente
a função judicial pode permitir-se ser ideologicamente imparcial , naquela
imparcialidade que a faça tao somente sensível ao apelo do Direito e da
Justiça.
Só que para tanto é decerto necessário que a função
institucional do operador do direito seja verdadeiramente independente. E bem
sabemos que esta independência é em boa parte uma condição sociológica, função
das condições que efetivamente se criem para a sua possibilidade. Mas ela será
sempre também, em não menor medida, o resultado de uma vocação. A função do
operador jurídico não será nunca independente, se não o quiser responsavelmente ser ; dificilmente
deixará de sê-lo ( até porque o exercício da função judicial potencia a
organização das condições favoráveis para tanto) se quiser assumir-se como tal. Um operador
jurídico independente é, pois, um dos mais importantes fatores do poder de que
o Direito necessita para se impor legitimamente.
Mas não bastará somente isto, nem poderá o operador do
direito cumprir validamente sua tarefa
institucional se esta não estiver motivada e esclarecida por uma
intencionalidade e consciência crítica, quero dizer, daquela crítica que
explicite e fundamente o próprio projeto axiológico do Direito que deve ser,
incondicionalmente , o seu. Isto é , que no exercício de sua função não abdique
nunca do seu mesmo dever comunitário e
que, na mesma medida, não aceite
degradar-se à mera função burocrática que “analisa processos”, reduzindo-se a um mero instrumento público pronto para
homologar e dar execução a todo e qualquer ditame do poder.
Trata-se, sem mais, de uma tarefa ou praxis social que
implica na incessante necessidade de se repensar críticamente a ordem jurídica,
no sentido de que se atribua à mesma ( levando-se em conta que o Direito vive
num clima de permanente revisão de conceitos, valores, principios e normas) , a
função principal de adequá-la para um mundo em constante transformação,
cônscios, sobretudo, da tarefa não somente de interpretar e aplicar as
garantias formais da democracia e nem à simples fiscalização da observância de
princípios e valores inerentes ao sistema positivo, mas, principalmente, de viabilizar a realização do
compromisso ético de utilizar o Direito para ir conquistando essas pequenas ( e
indefiníveis) “parcelas do justo” que justificam nossa existência e, dessa
forma, assegurar o incondicional respeito à dignidade da pessoa humana.
Cabe a estas parcelas de juridicidade a relevante tarefa de
fazer valer e projetar na legalidade vigente os valores fundamentais do
Direito, isto é, de adotar os meios necessários e adequados que os permitam
encontrar a verdadeira e consistente base de legitimação do fenômeno jurídico,
em um mundo onde a miséria e o desprezo pela dignidade humana convivem com o
desperdício da riqueza producida pelo trabalho social. Enfim, de um operador do
direito que incentive e priorize a implicação do Direito com uma postura
republicana e democrática do Estado e, portanto, que se distancie da paroquiana
concepção de sacerdote da dogmática, travestido do manto da infalibilidade jurídica e autoinvestido da suposta virtude
que faz com que funcionem como “les bouches
qui prononcent les paroles
de la loi”(Montesquieu).
Somente pensando assim o jurídico – com o cumprimento da idéia
de Direito num contexto histórico-comunitário e fundado na natureza humana – e
assumindo o operador do direito a função e a responsabilidade ética que lhe
cabe, participará o Direito da própria dialética da história e da eticidade
humanas , fazendo com que deixe de parecer justa a advertência de Nietzsche de
que o Direito, “o pensamento jurídico está por fundamentar, pois é utópicamente
idealista na teoria e astutamente materialista na prática” .
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[1] Neste particular, um modelo institucional e normativo do
Direito desenhado a partir de uma
concepção republicana democrática parece ser o mais adequado, não somente pelo
fato de que a tradição republicana seja capaz de reconhecer a pluralidade das
motivações da vida social humana – o que seguramente já constitui uma
gigantesca vantagem de partida com relação ao monismo motivacional da tradição
liberal -, mas principalmente porque seu peculiar talante de modelo
ético-político aberto aporta valores de cidadania e de metodologia
jurídico-política essencialmente úteis para tomar a lei como um instrumento de
construção social e, muito particularmente, para assimilar os câmbios formais e
materiais no processo de toma de decisões ante a dinâmica fluída ( e por vezes
enlouquecida) do “mundo da vida” cotidiana.
[3] Ademais, é só por meio dessa
linha de raciocínio que surge a real preocupação de habilitar o
intérprete-aplicador a “pensar em conseqüências”, permitindo-lhe
o conhecimento , a ponderação e a responsabilidade pelos efeitos de seus discursos jurídicos e , na
mesma medida, de capacitá-lo a considerar e a não dissimular a iniludível circunstância de que a vontade do legislador não produz , em definitivo , o conteúdo material da norma , ou seja , de que o direito já não é
algo que “nos vem dado senão algo que há
que ir fazendo incessantemente através da aplicação de suas normas, entendidas
estas como pautas que fazem
possível essa busca” (López
Moreno,1999).Em outras palavras, não só esse fazer incessante mas a longa “sombra do futuro” se estende sobre sua
interpretação.Essa, aliás, a razão pela
qual , no processo interpretativo, além da pré-compreensão (dado passado a
influir no resultado da compreensão do texto), existe também um componente
de prognose.
Vale dizer, a consideração, pelo intérprete, dos efeitos futuros da
interpretação (jurídica) que tomará diante do texto interpretado. As
interpretações jurídicas, dependendo do grau que assumam no ordenamento
jurídico, constituem inegável instrumento de alteração da realidade social, de
modo que o intérprete tem indisfarçável
“responsabilidade social” com relação ao discurso jurídico que profere.
Esta “responsabilidade social” nada mais
é do que um componente da prudência que deve iluminar todo o processo
hermenêutico, a fim de serem afastadas as interpretações estapafúrdias,
desconectadas do contexto histórico-social em que são proferidas. O operador do
direito, mais do que qualquer outro agente social, tem elevada à máxima potência essa exigência de prudência
com o teor das suas interpretações. O direito, como instância da realidade, tem
inegável função de promover a estabilidade social. Sob este prisma, a prognose
influi diretamente sobre os efeitos que uma determinada interpretação
jurídica provocará no futuro. A prognose manifesta
a prudência, pois revela a preocupação do intérprete com as conseqüências
futuras de um discurso jurídico sobre a estabilidade do corpo social. A
pré-compreensão (dado passado) e a prognose (dado futuro) ocorrem
rotineiramente no processo de interpretação jurídica. A “boa interpretação” , a interpretação “satisfatória”, entendida como
a interpretação cujo componente de justiça não afeta a estabilidade social, é
aquela que considera de forma equilibrada estes dois aspectos no processo
interpretativo (Cunha Pontes,2000).
[4] E uma vez que a sociedade usa
leis para encorajar as pessoas a se comportar diferentemente do que elas se
comportariam na falta de normas, esse propósito fundamental não somente torna o Direito altamente dependente da
compreensão das múltiplas causas do comportamento humano, como , e na mesma
medida, faz com que quanto
melhor for esse entendimento da natureza humana , melhor o Direito poderá
atingir seus propósitos.