12.04.1999
“Aí está, senhores, como se prefigura o que ocorreria, no país
donde trouxemos a nossa Constituição, nos Estados Unidos, se um Presidente,
ensandecendo no seu cargo, se descocasse ao extremo de fazer leis. Uma
gargalhada ultra-homérica abalaria o continente, e o mentecapto seria obrigado
a internar-se num hospício de alienados. Que é, pois, o que nos resta, aqui, de
um tal sistema, copiado traço a traço por nós, daquela República, se os nossos
Presidentes carimbam as suas loucuras com o nome de leis, e o Congresso
Nacional, em vez de lhes mandar lavrar os passaportes para um hospício de
orates, se associa ao despropósito do trasvairado, concordando no delírio, que devia reprimir?” (Ruy
Barbosa, Ruínas de um Governo, Rio, 1931, pp.92-96)
É
verdade que a atribuição do poder legiferante ao Chefe do Poder Executivo
consta hoje do texto constitucional (art. 62), embora apenas em caso de
relevância e urgência, o que tornaria a medida provisória o instrumento
formalizador de uma competência atribuída excepcionalmente ao Presidente da
República, haja vista que na realidade, legislar ainda é competência do
Congresso Nacional - além, é claro, da competência inspectiva, ou
fiscalizadora.
Não é
isso, porém, o que tem ocorrido – o Presidente da República tem utilizado esse
instrumento indiscriminadamente, com o beneplácito do órgão legislativo, até
mesmo para vulnerar princípios constitucionais imutáveis, as chamadas cláusulas pétreas, consagradas nos
quatro incisos do §4o. do art. 60 da Constituição Federal, de
maneira que essa atuação já se vem
caracterizando como a de uma constituinte
contínua, porque o Presidente e o Congresso não têm sido constrangidos à
obediência de qualquer limite jurídico, a quando de sua atuação como órgãos
legiferantes, exatamente pela inefetividade das limitações constitucionalmente
impostas.
Com
efeito, de nada valerão uma Constituição perfeita e leis altamente
democráticas, se não pudermos exigir do Estado a prestação jurisdicional, o
reconhecimento, a garantia e a efetivação de nossos direitos.
A
Constituição, entre nós, já de há muito perdeu sua tradicional posição na
hierarquia jurídica e em relação à ordem política, em decorrência da qual suas
normas se imporiam a todos, governantes e governados, e deveriam ser obedecidas
pelo Congresso Nacional, pelo Presidente da República e pelo Poder Judiciário,
que independente e cercado de todas as garantias constitucionais, poderia
assegurar a prevalência do Estado de Direito, ao invés do arbítrio e da
prepotência.
Diversos
têm sido os provimentos normativos recentes que atingem as cláusulas pétreas,
os direitos adquiridos e o equilíbrio entre os Poderes, v.g., as Emendas
Constitucionais nºs. 19 e 20 e as Medidas Provisórias nºs. 1798 e 1815, sendo
que esta última chegou ao absurdo de tornar sem efeito norma da Emenda
Constitucional nº. 19.
E o
Judiciário, com o enorme acúmulo de processos resultantes desses atentados
contra a letra e o espírito da Constituição, com as ameaças que vem sofrendo,
como a da criação de um controle externo, naturalmente com veladas intenções,
ou do efeito vinculante, idem, ou ainda a raivosa proposta de extinção pura e
simples de toda uma justiça e a absurda criação da CPI do Judiciário, se apresenta
cada vez mais enfraquecido e incapaz de desempenhar sua mais relevante missão
constitucional, exatamente a de intérprete e guardião da Constituição, pelo
controle da regularidade das leis e dos atos normativos do Poder Público em
face do Estatuto Supremo.
A
divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos
dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a
Constituição oferece. Esse enunciado, mais doutrinário do que propriamente
normativo, constante do art. 9o. de nossa Constituição do Império,
buscava suas razões na Teoria da Separação dos Poderes, definitivamente
sistematizada por Montesquieu, no Espírito das Leis.
Assim, a divisão
– separação ou distinção- e a harmonia
dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário – no Império, tivemos ainda o
Poder Moderador- assegurariam o respeito aos direitos dos cidadãos, bem como a
efetivação das garantias constitucionais, exatamente porque cada um desses
Poderes teria, ainda segundo Montesquieu, a par de sua faculdade de estatuir, desempenhando cada qual sua missão
específica, também a faculdade de
impedir, ou seja, limitar a ação dos outros poderes, o que hoje se denomina
sistema de freios e contrapesos.
Muitos autores contestam essa Teoria, afirmando que não
existem no Estado três poderes e sim apenas o seu poder de dominação, que se
manifesta sob múltiplas formas, passando seu exercício por diversas fases:
iniciativa, deliberação, decisão, execução, porém tendo sempre em vista um
objetivo, o de assegurar a supremacia da vontade dominante, sempre una e
indivisível.
A verdade, porém, é que essa teoria surgiu e
se tornou mais do que uma teoria, uma evidência, tão bem aceita na doutrina
e nos meios políticos, exatamente
porque representou antes de tudo uma arma contra a Monarquia absoluta, haja
vista que para Montesquieu, a
concentração dos poderes nas mãos de uma só pessoa, ou de um só órgão, seria a
própria definição da Tirania.
A exemplo de nossa primeira Constituição, todas as demais,
de 91, 34, 46, 67 e 88, consagraram também o princípio da separação dos Poderes
do Estado, excetuada apenas a Carta de 37, na qual o Presidente da República
era a autoridade suprema do Estado
(art. 73). Também sob o Regime de 64, os Atos Institucionais conferiam plenos
poderes ao Presidente da República, anulando da mesma forma a separação dos
Poderes constante do texto constitucional.
Hoje, estamos vivendo uma espécie de hiato constitucional.
Ao contrário de 64, quando o Ato Institucional expressamente declarou a abrupta
interrupção da normalidade constitucional, temos o Presidente da República, que
por duas vezes prestou o compromisso do art. 78 da Constituição Federal, de
manter, defender e cumprir a Constituição e observar as leis, exorbitando de
suas atribuições, através da impressionante quantidade de medidas provisórias
editadas, algumas delas flagrantemente inconstitucionais, sucessivamente
reeditadas, com a conivência do Congresso Nacional, enquanto que este, pela
criação de uma CPI, com o apoio do Presidente da República e do próprio
Presidente do Supremo Tribunal Federal, pretende “descocar-se ao extremo de
examinar as razões de uma decisão judicial”.
Nos Estados Unidos, o País donde trouxemos a nossa
Constituição, essa pretensão causaria também uma gargalhada, como no texto de
Ruy, mas para os defensores do Estado de Direito, essa intromissão indevida é
apenas motivo para lamentar.
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