Profissionalismo em nível superior

O Liberal, 26.05.2004

João Frutuoso Dantas*

 

A educação universitária e a profissionalizante não são a mesma coisa, mas não significa que são coisas muito diferentes e que haja fronteiras bem limitadas entre elas. Na realidade, há mais divergências entre as autoridades universitárias e as dos conselhos, ou ordens, profissionais do que propriamente entre formação e profissionalização.

A exigência de um exame de proficiência dos "bacharéis" que desejam exercer as funções que lhes são pertinentes é salutar para a sociedade. Nos Estados Unidos, além dos advogados, os engenheiros também são submetidos a uma avaliação pela entidade de engenharia devidamente credenciada, pois os engenheiros americanos recebem diploma de "bacharel em engenharia", daí por que têm que passar por um "exame" para certificá-los de que estão habilitados para serem responsáveis por projetos e obras de engenharia. No Brasil, os concluintes dos cursos de engenharia recebem diploma de Engenheiro e, por isso, já estão dispensados de exames nos Creas, embora essa realidade não seja imutável. 

A questão do "exame de profissionalização" não está no "o que fazer", mas no "como fazer" corretamente esse exame, que é uma garantia da proficuidade profissional do candidato aprovado e vem ao encontro dos interesses da sociedade que está a requerer, cada vez mais, profissionais liberais competentes, conforme o conceito da Organização Internacional de Normalização - ISO 9000:2000 e 10015:2001.

A proposta polêmica que o governo enviará ao Congresso para reservar a metade das vagas das universidades federais para alunos que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas, sem nenhuma alusão a medidas eficazes para recuperar o ensino público arruinado, será mais um fator que denotará nitidamente a prioridade da quantidade em detrimento da qualidade do ensino superior no Brasil. Essa realidade se comprova pela pesquisa do Inep realizada em todo o País (1995-2001), na qual apenas 25% dos alunos de escolas públicas apresentaram desempenho adequado em Português e em Matemática, contra 74% de escolas particulares.

Além disso, a meta, exclusivamente quantitativa, de ter 30% dos jovens (18/24 anos) nas universidades até 2010 equivale a dobrar o contingente atual. Se essa meta for alcançada, uma coisa é certa: a diferença entre jovens argentinos e brasileiros, na faixa etária de 18 a 24 anos, cursando universidades ficará em dez pontos percentuais, em vez dos atuais trinta e um pontos percentuais (40% - 9%). Essa vantagem dos portenhos, porém, parece ser apenas quantitativa, visto que a qualidade dos alunos da renomada Universidade de La Plata deixou os argentinos perplexos com os disparates de suas respostas em conhecimento geral, divulgadas em dezoito do corrente; a média das notas foi de 0,5 ponto, num total de dez, e a maioria não sabia o número de províncias daquele país.

Além da massificação do ensino superior, as empresas que transformam educação em negócio, a deficiência do ensino médio, particularmente na rede pública, as falhas na formação de professores e nas práticas pedagógicas, a baixa condição socioeconômica dos discentes e o seu contexto familiar são fatores comprovadamente determinantes no aprendizado do aluno. Corrigir essas distorções ainda não é a prioridade da educação no Brasil, pois a meta precípua é o efeito político dos números vultosos de alunos matriculados. É lamentável que não haja um programa educativo eficaz neste País, cujos objetivos estejam claramente estabelecidas, entre os quais o mais relevante de todos: o que os alunos terão que saber ao término do curso e como isso ficará devidamente comprovado perante a sociedade.

Para isso, é imprescindível que o chefe do Poder Executivo tenha a coragem de se proclamar "O presidente, O governador, ou O prefeito da Educação", ou seja, 100% comprometido com a educação. Nesse sentido, vale a pena recordar algumas coisas do passado, quando o então governador Magalhães Barata fazia visitas de surpresa aos grupos escolares para verificar de perto os problemas, os quais atribuía prazos para serem solucionados. Por vezes, ele mesmo voltava para constatar a eficácia da solução. Nas universidades federais, só em tempos de eleições se vêem nos pavilhões de aulas, nos laboratórios, nas salas de professores [...], os candidatos a reitor, ou a diretor de centro; depois de eleito, é um fato inusitado o aparecimento de um deles nesses recintos.      

A meu ver, o "exame da ordem" realizado pela OAB é de interesse público, como também seria se houvesse para outras categorias de profissionais liberais, inclusive a dos engenheiros. A reprovação de 80% dos candidatos nesse exame e de 95% nos concursos para magistratura reflete o despreparo dos "doutores em Direito" de hoje. A tendência desses números é aumentar, visto que os cursos de Direito nas universidades federais se encontram entre aqueles que menos recebem alunos de escolas públicas e, por conseguinte, deverão ser muito mais afetados se o mencionado projeto do governo federal for aprovado. Sabe-se que a Universidade Federal da Bahia já se antecipou em reservar 45% de suas vagas para alunos de escolas públicas, embora ainda não haja dados confiáveis sobre os resultados dessa medida. Contudo, paralelamente aos exames de profissionalização, as entidades que congregam profissionais liberais também têm que agir severamente na fiscalização do cumprimento do Código de Ética de sua categoria, sem se atrelar à teoria bizarra recém-publicada neste jornal de que "ética não se ensina; é uma questão de berço", a qual está a requerer argumentações bem fundamentadas para ser levada a sério. É notório, no entanto, que o ambiente familiar é o local mais adequado para ensinar, dar exemplo e praticar a ética. Apesar disso, Aristóteles escreveu dez livros para explicitar a ética ao seu filho Nicômaco.     

*engenheiro civil e professor da UFPA.