O REI LULA XIV

Fernando Lima

Professor de Direito Constitucional da Unama

21.06.2003

 

A essência do constitucionalismo reside no conjunto de limites e vínculos impostos pela Constituição aos governantes. A Constituição não é propriedade do partido político que venceu as eleições, para que ele a possa livremente reescrever, sem quaisquer limites. São incompatíveis com a idéia de Constituição o absolutismo dos Poderes Constituídos, que tudo decidem de acordo com as “razões de Estado”, e a prevalência do poder econômico sobre os interesses nacionais. Nem mesmo uma ampla maioria de votos na eleição presidencial pode legitimar todos os abusos. O Presidente foi eleito para respeitar a Constituição, que consagra um sistema de separação e de equilíbrio entre os Poderes, exatamente para que sejam evitados os abusos, para que sejam respeitados os nossos direitos fundamentais, e para que a sua violação possa ser punida.

 

A democracia não pode justificar a onipotência de um líder, como representante da soberania popular, mesmo que esse líder tenha sido eleito com cinqüenta milhões de votos. Essa idéia não é nova, e sempre foi muito criticada. Permitir a onipotência de um líder, como representante da maioria, consistiria na implantação de um governo de homens, em detrimento do governo das leis. O Presidente, embora eleito pelo povo, não pode demagogicamente pretender concentrar a pluralidade de forças e de interesses conflitantes na sociedade, porque a democracia pressupõe a ausência de poderes absolutos. A Constituição é um remédio contra maiorias, como lembra Ferrajoli.

 

Há alguns anos, a democracia liberal caracterizava um sistema democrático de rígida separação entre a esfera pública do Estado e a esfera privada do mercado, capaz de tutelar as liberdades individuais, respeitar as minorias e as opiniões contrárias, e defender o estado de direito e a separação dos poderes. A democracia liberal era exatamente o oposto do absolutismo.

 

         Se hoje as relações entre o Estado e os cidadãos se baseiam na lógica da “razão de estado”, negando assim à soberania popular a capacidade de limitar a onipotência do poder do governo, somos apenas súditos, sem qualquer direito ou liberdade que não derive da simples liberalidade do Estado, caracterizado pelo poder autoritário, sem quaisquer limites na Constituição e na lei, e que pode ser simbolizado pela expressão que se atribui a Luiz XIV: “O Estado sou eu.”

 

         Hoje, no Brasil, essa é a idéia corrompida de democracia que se está afirmando: a do poder onipotente, a das “razões de estado”, e a do acordo de Poderes, em lugar da separação de Poderes, essencial para que se possam evitar os abusos.

 

Hoje, o neoliberalismo, ao transformar o Chefe de Estado em uma autoridade absoluta, pretensamente legitimada pela maioria eleitoral, passou a caracterizar um sistema autocrático, em duas vertentes: a das razões políticas absolutas, que permitem até mesmo o desrespeito às cláusulas pétreas da Constituição, e a do absolutismo do mercado, que se sobrepõe ao próprio Estado.

 

A qualquer momento, reforma-se a Constituição, freqüentemente para possibilitar o aumento da receita, embora a nossa carga tributária, que nos anos oitenta se contentava com 20% do PIB, seja hoje de 41,2%, a maior do mundo.

 

A qualquer momento, rasga-se a Constituição, como tem acontecido nos últimos quinze anos, para permitir, por exemplo, que o Presidente da República assine milhares de medidas provisórias, usurpando a competência do Congresso Nacional, ou para permitir que inúmeros direitos fundamentais se transformem em letra morta, sem qualquer efetividade.

 

         Foi exatamente o acordo dos Poderes, ou a união dos Poderes, que permitiu a virtual inoperância de nossa jurisdição constitucional. Durante muitos anos, os juros estiveram limitados em 12% ao ano, através de dispositivo que nunca foi cumprido, por culpa do Judiciário. Da mesma forma, os direitos sociais, considerados meramente programáticos, para quando houver disponibilidade do Erário, talvez. Durante muitos anos, o Judiciário aceitou que o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão não servem para nada, porque a separação dos Poderes seria mais importante do que a efetividade da Constituição. Os exemplos são tantos, que não é possível enumerar a sua centésima parte.

 

         Por todas essas razões, é muito estranho, para dizer o mínimo, que agora o Judiciário e o Ministério Público estejam criticando violentamente a proposta da reforma previdenciária. Já existem até mesmo algumas opiniões no sentido de que essa reforma somente poderá ser aceita se não atingir os interesses de algumas categorias, como a dos magistrados e a dos militares.

 

         Na minha opinião, se me permitem, a emenda será bem pior do que o soneto, porque se a Constituição tem sido rasgada, nos últimos quinze anos, o que agora se pretende é criar duas categorias de brasileiros: a dos que têm direitos adquiridos, e a categoria daqueles que servem apenas para votar, para pagar impostos, e para continuar acreditando que temos uma Constituição.

 

         Vamos combinar assim: se temos que novamente rasgar a Constituição, que ao menos seja para todos, de modo igualitário. Vamos acabar de uma vez por todas com a previdência do servidor público, não esquecendo porém a dos magistrados, federais e estaduais, a dos legisladores, federais, estaduais e municipais, a dos membros dos Tribunais de Contas, federais, estaduais e municipais, a dos promotores e a dos procuradores federais e estaduais, a dos ex-Presidentes, ex- Governadores e ex-Prefeitos, a dos militares, e etc.

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