DEONTOLOGIA E AUTO-REGULAÇÃO
PROFISSIONAL NA ADVOCACIA
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Setembro de 2004 —
ÍNDICE
O
trabalho que nos propomos realizar consiste numa pequena reflexão sobre a
relevância da Deontologia no exercício da Advocacia e sobretudo sobre a forma como o respeito pelos seus ditames
tenta ser garantido pelo Estado, através da regulação da actividade.
Atentaremos especificamente na situação nacional e na auto-regulação feita
através das ordens profissionais.
Apesar
da não pretensão de completude do trabalho, não nos coibiremos de ensaiar um
balanço dos aspectos positivos e negativos do sistema adoptado
no nosso país bem como um conjecturar de possíveis
soluções para diminuir os últimos mantendo os primeiros.
Uma
advertência. Procuraram-se evitar, tanto quanto possível, as enumerações e
exemplificações exaustivas, num esforço de simplificação
destinado a não tornar a leitura monótona e previsível e a permitir, ao
mesmo tempo, maximizar a assumida dimensão reduzida do trabalho.
I – A Profissão de Advogado e a Deontologia
Uma
imagem por muitos tida do advogado é a de alguém que
luta a todo o custo por fazer triunfar as pretensões do seu cliente, tentando o
mais possível iludir e escapar à mão pesada da justiça e/ou
levando a cabo os seus melhores esforços para responsabilizar a
contraparte.
O
exercício da profissão de advogado seria assim um obstáculo à realização da
Justiça, visto regra geral como censurável e apenas tolerado na medida em que a
existência de profissional tão sem escrúpulos pudesse remotamente vir a
mostrar-se como conveniente, encontrando-se alguém na desconfortável posição de
necessitar de tais serviços.
Quem
partilha da concepção acima exposta, ainda que de forma mais moderada, não
compreende que, para além dos interesses privados, o advogado serve o interesse
público pois participa, desempenhando uma função
essencial, na realização da Justiça.
No
moderno Estado de Direito, a função jurisdicional surge como complemento indispensável
da função legislativa não sendo o resultado de um dado processo inteiramente
estranho ao interesse público na medida em que o que está invariavelmente em
jogo é a aplicação da lei.
Ao
advogado, profissional do direito, cabe um inigualável papel de intermediário
entre os cidadãos e a função jurisdicional do Estado, evitando e dirimindo
conflitos extrajudicialmente ou, não sendo possíveis tais soluções,
representando o seu patrocinado em Juízo, garantindo a qualidade científica e
técnica dessa representação e, ao mesmo tempo, desempenhando essas funções com
consciência ética, integridade e probidade. A melhor forma de garantir o acerto
e a justiça de uma sentença, simultaneamente síntese e culminar de qualquer
processo, é previamente dotar o juiz de duas teses opostas defendidas por
pessoas igualmente conhecedoras e competentes. A imparcialidade do juiz só
floresce à base da unilateralidade das partes.
Assim
se percebe o papel fundamental do advogado. Compreendendo a profissão nesta
perspectiva, compreendemos aquele que é ainda, apesar da mutação decorrente do
exercício daquela em sociedades cada vez maiores, um dos traços marcantes da
advocacia: a independência e liberdade com que o advogado pauta a sua actuação.
O
exercício da advocacia de forma livre e independente protege e desenvolve
virtudes como a coragem, a agilidade e o zelo e bem assim a mentalidade crítica
e combativa e a indispensável confiança na relação com o cliente, sendo a mesma
considerada, ao menos nas democracias ocidentais, como a que, jurídica e
sociologicamente, se afigura mais apta ao serviço do interesse público.
A
advocacia livre envolve contudo um perigo: a liberdade
significa também um regime de concorrência que corre o risco de se transformar
em exasperada luta pela sobrevivência, ditando condutas que acabarão por pôr em
risco os fundamentos do estatuto de independência e a longo prazo a existência
da própria actividade. Por isso a liberdade
profissional não se pode exercer sem regras. Servir a Comunidade, servindo a
Justiça é, antes de ser um dever jurídico para cada advogado, um dever ético pois é esse serviço que justifica e legitima a sua
existência. O conjunto de regras ético-jurídicas pelos quais o advogado deve
pautar o seu comportamento constitui a Deontologia
profissional.
A
deontologia profissional define-se então como sendo o
conjunto de regras éticas que disciplinam a conduta dos profissionais. Estas
normas podem na verdade existir apenas como simples normas de conduta. O seu
cumprimento dependerá exclusivamente da integridade dos profissionais ou da sua
vontade em prestigiarem a sua profissão. A ética profissional formar-se-á
espontaneamente dentro do próprio grupo sociológico como resposta às
necessidades de controlo da qualidade do serviço prestado e de prevenção da
concorrência desleal.
Não
raras vezes porém, esta forma de auto-regulação
voluntária, não é suficiente. Ou porque a classe profissional não se mostra
capaz de se regular convenientemente ou porque a actividade
profissional é especialmente relevante por se revestir de grande interesse
público, torna-se desejável que essa regulação seja feita graças à intervenção
do Estado enquanto comunidade social e política.
A
regulação estatal pode contudo tomar várias formas a
que correspondem vários graus de intervenção, sendo que a intensidade da
regulação estatal se apresenta, via de regra, como inversamente proporcional à
autonomia concedida aos profissionais para regularem a sua actividade.
II – O Estado e a Regulação Económica. A
Auto-Regulação
A
regulação estatal da economia consiste, em sentido amplo, na imposição de
regras pelos poderes públicos com a finalidade específica de influenciar o
comportamento dos agentes económicos no sector
privado. Uma das possíveis razões avançadas para a regulação estatal é a de
limitar o poder de mercado e aumentar a eficiência ou evitar a duplicação de
infra-estruturas em caso de monopólio natural. Uma outra razão é a situação que
nos propusemos tratar: a protecção dos cidadãos
assegurando um nível de qualidade do serviço prestado adequado bem como o
respeito por normas de natureza deontológica.
Relativamente
às medidas de regulação propriamente ditas, elas
separar-se-ão em duas categorias básicas, em função dos seus objectivos concretos e imediatos: um primeiro conjunto de
medidas, tradicionalmente designadas por de polícia económica,
compreende aquelas que visam restringir a liberdade de iniciativa económica, em qualquer uma das suas componentes – acesso,
organização ou exercício da actividade económica (são tipicamente medidas de carácter
preventivo e repressivo que se traduzem em deveres para os seus destinatários);
um segundo conjunto compreende medidas que contêm indicações, incentivos,
apoios ou auxílios aos agentes económicos (advindo
delas ónus ou faculdades para os seus
destinatários).
O
conceito de auto-regulação na sua definição mais elementar é a regulação levada
a cabo pelos próprios interessados podendo a mesma ser privada (se as suas
instâncias forem estabelecidas por auto-vinculação dos
regulados, de forma voluntária, na base do direito privado e da liberdade negocial) ou pública (se as instâncias de auto-regulação
forem impostas ou reconhecidas oficialmente pelo Estado e dotadas de poderes de
normação e de disciplina obrigatória idênticos aos
deste). Relativamente ao nosso trabalho, a forma de auto-regulação que mais nos
interessará analisar será a pública pois é essa a
realidade nacional no que à advocacia diz respeito.
A
auto-regulação pública supõe sempre uma certa medida de regulação estatal (ao
menos a necessária para organizar ou reconhecer oficialmente a organização
profissional, para estabelecer as suas atribuições e definir a sua
competência). Assim ela é protagonizada por organismos profissionais ou de
representação profissional dotados de estatuto jurídico-público. É o que se
passa com a Ordem dos Advogados.
Paralelamente,
a auto-regulação pública apresenta-se como sendo, de entre as várias formas que
a regulação pública pode tomar, aquela em que a dimensão regulatória
estatal é mais reduzida. O Estado descarrega nos interessados as tarefas de
regulação municiando contudo o organismo regulatório com os necessários recursos jurídicos (meios de
autoridade e sancionatórios). O sistema funciona
porque, e na medida em que, a entidade a quem cabe regular a actividade tem como seu interesse fundamental a persecução
do mesmo objectivo de interesse público visado pelo
Estado. Esta fundamental coincidência, no caso de uma associação profissional,
entre a defesa dos interesses colectivos privativos
da profissão e os interesses reguladores do Estado é provavelmente o que mais
impressiona quando falamos de auto-regulação pública.
É portanto logicamente necessário que a profissão esteja
interessada na regulação o que não obsta a que, ainda que essa coincidência
seja ab initio assumida, essa tensão
contraditória básica marque indelevelmente a vida da entidade regulatória.
III – As Ordens Profissionais e a Ordem dos Advogados em especial
Um
exemplo clássico de auto-regulação pública é nos dado pelas Ordens Profissionais.
Tratam-se de associações públicas formadas pelos
membros de determinada profissão considerada como de interesse público com o
fim de, por ampla devolução de poderes do Estado, regular e disciplinar o
exercício da respectiva actividade profissional.
Fazem assim parte da administração autónoma.
Prosseguem os interesses públicos próprios das pessoas que os constituem,
definindo com independência a orientação das suas actividades
e estando apenas sujeitas, segundo o artigo 199.º, alínea d),
da Constituição da República Portuguesa, à tutela do Governo, mero poder de
fiscalização e controle que não permite a este último dirigir ou orientar
aquelas.
Para
que possam cabalmente cumprir os seus desígnios, gozam as ordens profissionais
do privilégio da unicidade (só podendo existir uma associação pública por cada
fim de interesse público), do benefício da inscrição obrigatória e de poderem
impor a quotização dos seus membros, controlam o acesso à profissão do ponto de
vista legal e deontológico e exercem sobre os seus
membros o poder disciplinar.
No
entanto existe uma outra face decorrente do estatuto de associação pública. A
obrigatoriedade de colaboração com o Estado, o respeito pelos princípios gerais
do Direito Administrativo e a sujeição ao controle do Provedor de Justiça serão
disso apenas alguns exemplos.
Relativamente
às funções concretas das ordens, elas repartem-se por quatro áreas de acção bem distintas: têm uma inegável dimensão de
representantes e defensores da profissão; prestam variados serviços de apoio
aos seus membros; cumprem incumbências administrativas relacionadas com a actividade; finalmente, função mais relacionada com o nosso
trabalho, regulam e disciplinam a profissão.
A
função de regulação e disciplina da profissão desdobra-se na regulação do
acesso e na regulação do exercício da mesma. Quanto à regulação do acesso ela
implica uma análise da competência e capacidade do candidato ao exercício da actividade em questão. No que diz respeito à regulação do
exercício propriamente dito, o que está em causa no fundo é o cumprimento das
normas de conduta profissional e da Deontologia que,
quando inobservadas poderão dar azo ao exercício do
poder disciplinar pela ordem profissional em causa.
No
que diz respeito ao Direito e concretamente à Advocacia, foi a crescente
complexidade do mundo jurídico que simultaneamente ditou a valorização da
profissão e a necessidade de regulação estatal.
A
forma escolhida pelos Estados para regularem o exercício da Advocacia não foi contudo universal, tendo surgido múltiplos modelos
diferentes podendo estes ser basicamente reconduzidos a três formas
fundamentais. A colegial é a predominante na Europa ocidental e vigente
em Portugal. Os advogados organizam-se em organismos de inscrição obrigatória,
exercendo a profissão com independência e autonomia face ao Estado, pertencendo
àqueles organismos o poder de disciplinar a actividade.
A forma de organização livre caracteriza-se pela liberdade de inscrição
nas associações profissionais, cabendo aos juízes o exercício do poder
disciplinar. É a forma de organização adoptada nos
Estados Unidos da América mas também em países
europeus como a Suíça, a Finlândia ou a Noruega. A terceira forma fundamental é
a organização estatal. Os advogados dependem do Governo como funcionários
públicos. Era a forma de organização utilizada na União Soviética e podemos
hoje ainda encontrá-la em países como a China.
Em
Portugal, a Ordem dos Advogados foi criada pelo Decreto n.º
11715, de 12 de Junho de 1926, respondendo aliás a uma pretensão então já há
muito reiterada pela classe. Após ter sido integrada no Estatuto Judiciário e
ter permanecido dependente, em certos casos do Ministério Público, a Ordem
viria a sofrer profundas transformações na sequência
da revolução de 25 de Abril de 1974 e da Constituição de 1976. Elaborou-se um
Estatuto – Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de Março – que
garantiu a autonomia do organismo face ao poder político, alargaram-se os
direitos dos advogados e aprofundou-se a democratização da profissão.
Apesar
de terem surgido como parte integrante da organização corporativa do Estado
Novo, os organismos de auto-regulação profissional então criados que ainda hoje
subsistem são actualmente, no plano teórico e não só,
muito diferentes.
Sendo
a administração autónoma uma forma de administração
pública exterior ao Estado, chegamos à conclusão que o corporativismo não foi,
no seu âmago, uma forma de administração autónoma,
antes uma perversão da administração autónoma em
administração indirecta do Estado. O lema do fascismo
italiano – «tudo no Estado, nada fora do Estado» – ilustra da melhor
forma o que se pretende demonstrar. Mesmo as figuras hoje existentes e que são
oriundas do período corporativista sofreram, após o 25 de Abril de 1974,
profundas transformações que as tornaram em genuínas estruturas de
auto-regulação profissional.
O
Estado moderno, na prossecução dos seus múltiplos
fins, reserva para si próprio uma espécie de poder organizativo da sua
estrutura e simultaneamente um poder organizatório de conformação da sociedade.
Isso prende-se com a necessidade de deixar ao Estado a
capacidade e margem necessárias para decidir e definir quais os melhores meios
para adequadamente prosseguir os fins de interesse público.
Ao
criar a Ordem dos Advogados (ou para este efeito qualquer outra ordem
profissional), o Estado escolhe descarregar a tarefa pública num sujeito
diferente dele próprio, numa associação profissional. Esta escolha implica
assumir e aceitar que a prossecução dos interesses
dos sócios funcionará como um motor de realização da tarefa pública.
O
Estado, sem abrir mão da tutela de determinados interesses que considera
públicos, deixa de ter de se ocupar com a criação e manutenção de órgãos a eles
dedicados dentro da sua máquina administrativa para, em vez disso, instituir um
sujeito de direito que autonomamente os prossiga.
Tendo
considerado que o exercício da advocacia desempenha um papel fundamental na
administração da Justiça mas tendo igualmente em mente
que esse exercício feito de forma privada garante como que um momento
equilibrador na afirmação pública desta, o Estado confiou a uma associação
profissional a tarefa de articular os interesses desses particulares com o
interesse público, regulando a actividade somente até
ao ponto mínimo de intervenção estatal.
O
que justifica a instituição da Ordem é assim a tutela da dignidade e qualidade
da função de advogado como instrumental relativamente à realização da Justiça.
É nesta perspectiva que a Ordem protege e cultiva os valores deontológicos. Assim sendo, chegamos à conclusão que o
conceito que sustenta a auto-regulação só pode ser o de uma deontologia
ao serviço da sociedade.
IV – Vantagens e inconvenientes do Sistema vigente
A
vantagem mais imediata da devolução de poderes que a auto-regulação implica é,
pelo menos do ponto de vista do Estado, o descongestionamento
das suas estruturas básicas e os ganhos de eficiência na gestão que a isso
estão associados. Mas este não é o único ponto onde a auto-regulação se mostra
vantajosa, quer em comparação com a regulação estatal quer em comparação com a
ausência de regulação.
Relativamente
à ausência de regulação, a auto-regulação apresenta todas as vantagens já
afloradas como justificativas da existência de regulação. Importará então
analisar quais as vantagens do sistema auto-regulatório
em comparação com a regulação estatal directa ou indirecta.
Um
ponto essencial a salientar é o facto de que, frequentemente, o auto-policiamento
de um grupo é menos oneroso e mais eficaz do que a regulação estatal. Menos
oneroso porque os profissionais assumem, se não totalmente, grande parte dos
custos e mais eficaz pois existirá uma maior propensão
para o cumprimento de regras ditadas por uma organização de iguais do que por
imposição estatal em que a própria legitimidade democrática, apesar de
inquestionável, será certamente menor.
O
facto de serem os próprios
profissionais a regular a sua actividade
garante igualmente, pelo menos em princípio, uma maior flexibilidade e
agilidade na resolução de problemas que afectem a
classe. A proximidade e dedicação são assim outras das vantagens.
Do
ponto de vista estatal acresce ainda o facto de, com
a auto-regulação, a classe se encontrar em certa medida responsabilizada,
pondo-se o Estado a salvo de grande parte das críticas e ataques que sofreria
certamente por parte daquela, caso desempenhasse um papel mais activo na regulação do sector.
Quanto
aos regulados, a auto-regulação apresenta-se igualmente vantajosa na medida em
que lhes permite escapar de uma regulação mais intensa por parte do Estado,
salvaguardando a liberdade e autonomia económico-profissional.
A
auto-regulação permite assim superar dois obstáculos tradicionais da regulação
estadual: as dificuldades de reacção e implementação
das práticas reguladoras e o problema da legitimação das medidas impostas em
nome dos interesses gerais da sociedade. Quanto ao primeiro, a auto-regulação
possibilita a reunião na mesma entidade de reguladores e regulados, quanto ao
segundo ela endogeniza os motivos da regulação,
apresentados em benefício da própria profissão. É a ideia
de que a má conduta de um profissional fere o prestígio de toda a classe e que portanto deverá ser objecto de
interesse e repressão por parte desta.
Contudo,
a auto-regulação tem também os seus inconvenientes. Ela trás consigo a
proliferação de centros de decisão autónomos, de patrimónios separados, que escapam em grande medida ao
controlo global do Estado. Mais do que isso, corre-se
o risco de desviar a função regulatória em proveito
próprio dos regulados. A transformação das ordens profissionais em instrumentos
de lobbying dos profissionais não é algo de
que não se tenha já tido exemplo. Noutro plano, corre-se o risco de não se
utilizar tão frequentemente quanto desejável o poder
disciplinar, visto que os fiscalizadores são também os fiscalizados. Todos
estes riscos são potenciados pela democraticidade,
mais directa no seio das ordens do que numa regulação
através do Estado.
Para
além das desvantagens acima referidas outras surgem que colocam problemas de
constitucionalidade. Não se duvida da prevalência do interesse público como
justificação de medidas restritivas da liberdade individual, contudo, quando,
como acontece com a Ordem dos Advogados, a regulação estatal é acompanhada de
inscrição coactiva e poderes de regulação e
disciplina sobre os associados, as associações profissionais podem contender
com outros direitos fundamentais além da liberdade de associação.
As
funções de defesa e representação da classe profissional que as ordens
profissionais assumem, podem facilmente descambar na instituição material de um
sindicato público e por essa via porem em causa a liberdade sindical
constitucionalmente garantida, sobretudo na sua vertente negativa ao
inviabilizarem o exercício da profissão por parte de alguém que não deseje
pertencer a nenhuma espécie de organização do género.
Como
último ponto não podemos deixar de notar a existência de restrições ao acesso à
profissão como aquelas expressas no artigo 156º do
Estatuto da Ordem relativas à idoneidade moral que introduzem no sistema
uma indesejável subjectividade que dificilmente
poderá ser vista como constitucional.
V – Sistemas alternativos
A
verdade é que a Ordem dos Advogados não tem conseguido lidar de uma forma capaz
com as mudanças que a profissão tem sofrido nos últimos anos. Cada vez mais os
advogados exercem a sua profissão integrados em sociedades
cada vez maiores, facto que faz diminuir
fortemente aquele que definimos como um dos traços essenciais do exercício
desta profissão: a independência. Paralelamente, o protótipo do advogado também
mudou. O acesso à profissão generalizou-se o que fez aumentar a concorrência e
diminuir o nível económico médio dos profissionais.
Para além destas questões, e independentemente delas, como pano de fundo, a
integração europeia aprofunda-se colocando novas
questões e desafios à classe.
A
reorganização em empresas dificilmente será evitável, sendo mesmo duvidoso que
tal seja, por princípio, indesejável. O mesmo se diga relativamente à
concorrência. O que é por outro lado também imperioso que se diga é que a
realidade destes dois factores conjugados exige da
Ordem uma vigilância muito mais atenta às violações deontológicas.
O
cenário agrava-se quando se assiste a uma proliferação de Cursos de
licenciatura em Direito, alguns dos quais fornecendo formação de qualidade
duvidosa. Se aqueles primeiros pontos são realidades com as quais a Ordem tem
de saber conviver, esta última realidade deverá merecer da mesma uma profunda
oposição pois ele faz perigar algo que até à pouco tempo
não se discutia sequer: a competência técnico-científica dos advogados
portugueses.
O
que é facto é que, apesar dos esforços, o prestígio
da profissão perde-se diariamente e as normas deontológicas
passaram de descritivas a decorativas. A Ordem não está a demonstrar capacidade
para regular cabalmente a actividade. Importará então
ponderar sistemas alternativos que se possam demonstrar como mais hábeis no
serviço do interesse público.
Não
pensamos que o sistema de funcionalismo público dos advogados seja defensável
nem adaptável à realidade nacional. Com este sistema perder-se-iam
características indispensáveis para o correcto
exercício da profissão para além de que a sua implementação constituiria um
salto sobremaneira grande para poder facilmente ser dado sem implicações
sócio-profissionais profundas.
Situado
no outro extremo do espectro organizacional está o sistema anglo-saxónico.
Este sistema caracteriza-se pela ampla liberdade dada aos profissionais, sendo
as funções de regulação delegadas a organizações profissionais privadas ou cometidas a organismos reguladores públicos de composição mista
entre profissionais eleitos pelos seus pares e membros do poder político.
A
adaptação deste sistema à realidade nacional parecer-nos-á menos complexa que a
do sistema anteriormente descrito. Resolveria mesmo alguns dos dilemas
constitucionais que o sistema actual acarreta.
Contudo, a sua capacidade para solucionar os restantes será no mínimo duvidosa.
De facto, o que pensamos ser necessário é um
acréscimo da regulamentação e não um movimento no sentido contrário. Colocar
esperanças no mercado significaria esperar que a mão invisível
funcionasse, correndo o risco de, no entretanto, serem
seriamente lesados os interesses dos cidadãos.
Parece
então não haver solução à vista, ou pelo menos outra que não a de depositar
todas as expectativas no sistema de regulação actual.
Tal será a posição apenas de quem não conceba uma regulação do exercício da
profissão de advogado feita fora do âmbito da auto-regulação. De facto, pensamos que um sistema mais adequado poderá passar
por uma intervenção mais activa do Estado, via
administração indirecta. Quebrando-se aquele
paradigma, estariam criadas as condições para implementar um sistema de raiz
capaz de lidar com os problemas com que a profissão se debate.
Se
se retirasse o monopólio de acesso à profissão à
Ordem e se criasse um instituto público para o efeito que se limitasse a aferir
do cumprimento pelos candidatos de requisitos objectivos
mínimos (quaisquer que eles fossem), estaria eliminado um dos maiores problemas
com que aquela associação se depara: o ter que lidar anualmente com uma
avalanche de candidatos que não tem, nem pode pretender ter, capacidade de
testar convenientemente. Ao mesmo tempo, o Estado sentiria mais directamente este problema e mais facilmente se mobilizaria
para o resolver.
Evidentemente
que o sistema se completaria com o surgimento de associações profissionais
privadas, de inscrição facultativa mas que graças ao
seu prestígio e ao prestígio dos seus membros se tornaria na prática quase
obrigatória. Isto porque os cidadãos escolheriam tendencialmente
o patrocínio de advogados membros de associações prestigiadas que só o seriam
se se apresentassem como extremamente exigentes no
plano deontológico. Os sócios teriam então que
forçosamente zelar pelo cumprimento desses deveres sob pena de um descrédito
que reflexamente os atingiria. Os valores deontológicos
seriam então protegidos com um novo fôlego.
Este
modelo não estará isento de críticas, sendo a mais acertada a possível
fragmentação da classe e consequente perda de
importância. A eventual politização das associações privadas seria também um
risco. Tudo somado contudo, não deixamos de crer nas
vantagens de um sistema montado nos moldes descritos.
Feita
a reflexão, acabamos este nosso trabalho com mais dúvidas do que as que com começámos. Não terminará por aqui certamente o nosso
pensamento relativamente às questões abordadas. Resta-nos desejar que o do
leitor também não e que este trabalho possa ter de algum modo contribuído para
isso.
Quanto
à Advocacia e aos seus problemas, a ideia a reter
quanto a nós é a de que é necessário terem os advogados coragem para fazer um
exame profundo à sua profissão e ao modo como ela está organizada para que, sem
dogmas nem preconceitos, esta possa sê-lo da forma que melhor servir o
interesse público. Nas palavras de Calamandrei,
escritas em 1920 na sua obra «Troppi avvocati!» mas impressionantemente actuais,
esta é a hora em que toda a classe que não queira ser varrida do porvir
iminente deve realizar sem hipocrisias o seu exame de consciência e
perguntar-se sobre que títulos de utilidade comum poderá
fundar o seu direito a existir amanhã numa sociedade melhor do que esta.
Esta será então a hora.
ARNAUT,
António; «Iniciação à Advocacia»; Coimbra Editora, 5.ª
edição; Coimbra, 2000.
Autores
Vários; «A regulação em Portugal – Conferências ERSE»; ERSE; Porto,
2000.
FREITAS
DO AMARAL, Diogo; «Curso de Direito Administrativo, vol. I»; Almedina, 2.ª edição; Coimbra,
1996.
LUÍS,
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Centro Distrital de Estágio do Porto; Porto, 1999.
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VITAL, «Administração Autónoma e Associações
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VITAL; « Auto-regulação profissional e Administração Pública»; Almedina; Coimbra, 1997.
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António Carlos / GONÇALVES, Maria Eduarda / LEITÃO
MARQUES, Maria Manuel; «Direito Económico»; Almedina, 3.ª edição; Coimbra,
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