Sobre
o trabalho da mulher: liberdade, igualdade e discriminação
Atahualpa Fernandez*
Temos entendido que algumas normas do ordenamento
jurídico brasileiro relativas ao trabalho da mulher[2]
continuam gerando discussões acerca da legitimidade e validade de seus
respectivos conteúdos normativos, tendo em vista o princípio constitucional que
assegura igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres.
De um modo geral, parecem ser duas as posições
adotadas com relação a essa questão: de um lado, os defensores da tese de que
normas destinadas à proteção laboral da mulher foram superadas pelo preceito
constitucional que assegura tratamento igualitário entre homens e mulheres,
eliminando qualquer tipo de postura discriminatória nas relações de trabalho
com base em gênero; de outro lado, e em sentido contrário, os que defendem que
a isonomia não é um princípio absoluto e não pode ser aferida sem a
concorrência dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (por
exemplo, de que determinadas normas não cuidariam propriamente da questão de
gênero, mas de fatores biossociais que levam à criação de vários dispositivos
de proteção ao trabalho da mulher).
Pois bem, esse
tipo de discussão, longe de configurar um debate ocioso no contexto da
sociedade brasileira, põe em evidência um dos mais delicados temas da teoria
jurídica contemporânea: a relação entre o direito e a moral e o problema da
colisão entre princípios jurídicos consagrados na Constituição da República. No
caso, uma contradição entre o princípio de igualdade e o princípio que
determina ao Estado promover as condições para que a liberdade e a igualdade de
todo cidadão sejam reais e efetivas, removendo os obstáculos que impidam ou
dificultem sua plenitude.
Para entender-nos,
os principios são exigências de tipo moral que estabelecem direito e/ou deveres
e que, à diferença das leis (que determinam pautas relativamente específicas de
conduta), sua estrutura não contém uma previsão de fatos e uma consequência jurídica
bem definidos. Tal caracteristica não somente torna impossível qualquer
aplicação isolada de cada um dos princípios consagrados na Constituição, senão
que supõe por sua vez uma tarefa de ponderação e harmonização com outros
princípios, igualmente válidos e relevantes, capazes de representar em um
determinado caso concreto uma fuente de exigências de diferente signo às do
princípio eveltualmente posto em questão. Dito de outro modo, os princípios têm
uma dimensão de peso ou de importância: quando se utilizam para legislar ou
resolver uma determinada situação ou conflito social, devem ser ponderados
entre si e a solução, sempre condicionada às circunstâncias concretas, será
aquela derivada do peso relativo atribuído a cada um dos princípios concorrentes.
Na
hipótese a que nos referimos, a concorrência se dá entre o princípio da
igualdade e o princípio da liberdade, sendo a garantia deste último buscada por
meio de medidas de discriminação positiva. Ambos os princípios se caracterizam
por ser o fundamento de toda ordem política democrática. Os dois são conceitos
fundamentais para qualquer proposta consistente acerca de questões jurídicas e
morais. Como tal, parece não haver lugar legítimo para uma contraposição liberdade/igualdade,
pois, como se verá em seguida, não somente a igualdade é entendida como
reciprocidade na liberdade senão que é em si mesma a garantia da liberdade
plena. A igualdade forma parte do desenho institucional de estratégias
compensatórias para reparar, na medida em que os fatos sociais assim o exijam,
as desigualdades reais e materiais entre os membros de uma comunidade ética.
Nesse sentido,
o argumento de que determinados dispositivos legais de proteção ao trabalho da
mulher violam o princípio da igualdade é tão demagogicamente falso como certo é
o fato de que a desigualdade real implica ela mesma uma falta de liberdade,
tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa desigualdade. Porque é a
falta de igualdade real a que leva à falta de autonomia e liberdade (de
decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir ) daquele que vive com o
permisso do outro e dos que ainda não se encontram no “melhor dos mundos
possíveis”. E no que se refere a discriminação nas relações de
trabalho com base em gênero, são as mulheres quem vêm padecendo um profundo, crônico e
perversamente dissimulado problema de falta de igualdade e de liberdade, com a
consequente perda de sua autonomia[3].
A igualdade como “núcleo duro” da justiça
Poucas noções são tão
complexas e despertam tantas paixões, consomem tantas energias, provocam tantas
controvérsias, e têm tanto impacto em tudo o que os seres humanos valoram como
a idéia de justiça. Sócrates, através de Platão, sustentava que a justiça é uma
coisa mais preciosa que o ouro e Aristóteles, citando a Eurípides, afirmava que
nem a estrela vespertina nem a matutina são tão maravilhosas como a justiça.
O que é a justiça e como
realizá-la? Uma virtude das
pessoas? A primeira das qualidades das
instituições políticas e sociais? O meio
entre dois extremos? Uma ideologia da
classe dominante? O resultado de um
procedimento eqüitativo? O que surge de um processo histórico no qual não se
violam direitos fundamentais? Um ideal
irracional? Estas e muitas outras respostas extremamente divergentes entre sí
foram dadas por filósofos sérios ao largo de uma extensa história do pensamento
dedicado a desvelar esta intuitiva – e igualmente intencional, emotiva e
significativa – concepção.
A preocupação dos filósofos se centra em analisar um valor que é empregado
em muitos tipos de discursos, articulando concepções que permitam justificar ou
impugnar os juízos que se formulam nos argumentos que empregam e/ou manipulam o
conceito
Por certo que ela ocupa um lugar central no discurso moral e é
absolutamente distintiva do atual discurso jurídico, em especial quando se
trata de julgar o grau de valor com que uma determinada norma pode ser posta em
prática e na qual cabe efetuar com
ela câmbios para o bem
dos homens. E no conjunto dos discursos em que se emitem juízos acerca
da justiça a idéia de igualdade parece ocupar sempre uma posição de destaque.
Com
efeito, desde suas primeiras formulações, a justiça sempre foi associada com a
igualdade e, nessa mesma medida, foi evoluindo ao compasso desse princípio
ilustrado. No Livro V da Ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu
a sua doutrina da justiça (que, ainda hoje, representa o ponto de partida de
todas as reflexões sérias sobre a questão da justiça) situando a igualdade
(proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo
básico da justiça[4].
Mas a igualdade
não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande
base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais, isto é, a
situação de fato não é a igualdade: a evolução nos desenhou desiguais, como
mostra às claras o próprio fato do nascimento, que oferece não somente a
diversidade de cunho social, senão também a desigualdade em talentos, em
condições físicas, em saúde, etc. Dito de modo mais simples, embora compartamos
determinadas características comuns e universais enquanto membros da mesma
espécie, dispomos de padrões de circuitos neuronais ( de conexões nervosas ou
sinápticas) que nos fazem únicos. O princípio ético-político da igualdade não
pode apoiar-se portanto em nenhuma característica “material”; é mais bem uma
estratégia sócio-adaptativa, uma intuição ou aspiração desenvolvida ao longo de
nossa história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais
reduzidas até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais
conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade).
A justificação
de tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro
de uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores socialmente
aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva ou
adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro
modo, não haveria podido prosperar biologicamente. Em realidade, parece
razoável sustentar como correta a hipótese de que expresse (o princípio da
igualdade) uma intuição ou emoção moral arraigada em nossa arquitetura
cognitiva mental: o mais canalha dos homens sempre reagirá ante um tratamento
desigual no que se refere a sua pessoa.
A regra,
portando, é do trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de
classe, adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética ou
neuronal – que inclui a distribuiçao aleatória de talentos e de habilidades –
enfermidades e incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos
absolutamente responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e
razoavelmente justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo duro da
justiça, não somente não o é da totalidade da justiça como as reais e materiais
desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias
compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades
nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. A distribuição das dotações
sociais e genéticas – como não deixou de advertir John Rawls – correspondem a um
ativo comum da sociedade, ainda que
somente seja porque é a sociedade quem as premia e valora ou porque somente em
seu seio podem ser exercidas.
Por conseguinte, justiça e igualdade não significam, necessariamente,
ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre
ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito particularmente, ausência de
exploração de uns sobre outros. Daí que tratar como iguais aos indivíduos não
necessariamente entranha um trato idêntico: não implica necessariamente, por
exemplo, que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a
comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados
às diversas condições (Dworkin).
Nas palavras de
Peter Singer, a existência de profundas diferenças entre os seres humanos deve
levar a certas diferenças nos direitos a serem atribuídos a uns e outros.
Quando se invoca um princípio de equidade (presente na maioria das teorias contemporâneas
da justiça) não se está em absoluto pretendendo que deva conduzir a uma
identidade absoluta de direitos: da mesma maneira que é absurdo conceder a
liberdade de aborto a um homem, o é a pretensão de dar a liberdade a uma mulher
de contrair matrimônio, por exemplo, com um porco. É a “consideração” a que
deve ser mantida por igual; a consideração que merecem diferentes seres conduz
a distintos direitos[5].
E porque a
crença de que os sexos são idênticos acaba por conduzir a certo número de
políticas de duvidoso tino e efetividade, desprezando-se o princípio de que a “dignidade”
não pode ignorar o fato óbvio da especificidade da condição feminina[6],
tem sentido ligar de forma prioritária a concepção de justiça à idéia de
igualdade material. A história recente das teorias da justiça é
fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e
sofisticado dessa intuição ou emoção moral inata que parece compartimos com
outros primatas não hominídeos. Esta intuição moral ou virtude ilustrada que
configura o núcleo duro de justiça, somada às virtudes ilustradas da liberdade
e fraternidade, somente são aspectos diferentes da mesma atitude humanista
fundamental destinada a garantir o respeito incondicional à dignidade humana.
Valores e princípios constitucionais: a dignidade
humana
Parece razoável
começar a tratar o tema da dignidade humana lembrando que a Constituição não é
uma mera justaposição de normas, senão um conjunto normativo dotado, ainda que
tendencialmente, de unidade e coerência entre seus preceitos ao responder a
determinados valores e princípios comuns ordenadores - basicamente os
discriminados nos artigos 1º. ao 5º do texto constitucional.
Com normas
dessa natureza (com princípios e valores) se inaugura a Constituição da República:
constituem as normas basilares da parte dogmática ou substantiva de nossa
Constituição e expressam a ordem valorativa que há de presidir o ordenamento jurídico
brasileiro na organização dos vínculos sociais relacionais elementares através
dos quais os humanos constróem sistemas aprovados de interação e estrutura
social.
Há, assim, uma
evidente conexão sistemática entre princípios e normas (constitucionais e infraconstitucionais),
pois não parece razoável conceber a dignidade humana sem liberdade, justiça,
igualdade e pluralismo jurídico, e estes valores, por sua vez, seriam indignos
se não redundassem em favor da dignidade humana. Isto quer dizer que os
princípios fundantes da ordem constitucional proclamam um valor humano na
medida em que concreta os valores que devem presidir a interpretação e
aplicação de todas as demais normas contidas em nosso ordenamento, inclusive as
próprias normas constitucionais[7].
Estes critérios
inspiradores do sistema jurídico constituem a base inteira e o fundamento do
próprio ordenamento, o qual há de prestar a estes princípios seu sentido
próprio em todo e qualquer processo de sua realização prático-concreta. Já não
se trata de de proclamações enfáticas e retóricas reduzidas a princípios
programáticos sem nenhum valor normativo, senão de autênticas normas jurídicas,
que representam os ideais de uma comunidade e que não esgotam sua virtualidade
em seu estrito conteúdo normativo: constituem parâmetros vinculantes para a
interpretação e aplicação do direito e, ao mesmo tempo, um limite para o
próprio ordenamento jurídico.
Nesse contexto,
o conceito da dignidade humana não se esgota em uma mera funcionalidade
constitucional porque a idéia da livre constituição e pleno desenvolvimento do
indivíduo sob o manto de instituições justas (igualitária e fraterna)
constitui, ademais, um elemento axiológico objetivo de caráter indisponível
que, junto com os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o respeito à lei
e aos direitos dos demais, configuram o fundamento último da ordem política e
da paz social. A dignidade da pessoa humana não é, portanto, mais uma idéia
valorativa dentro do esquema constitucional, senão que expressa um dos
fundamentos da ordem estabelecida. A sua colocação na Constituição como
princípio normativo fundante dota-o de um significado especialmente relevante:
como princípio constitucional fundamental, inviolável e indisponível e, como
tal, como critério axiológico, normativo, vinculante e irrenunciável da práxis
jurídico-interpretativa.
Mas em que consiste este princípio fundamental? Qual o fundamento que
subjaz à idéia da dignidade humana? Pois bem, neste particular, nos filiamos à doutrina
que tende a conceber a dignidade a partir da situação básica de relação do
homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular encerrado
em sua esfera individual e que havia servido às caracterizações deste valor na
fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva (relacional,
co-existencial) da dignidade é de suma trancendência para calibrar o sentido e o
alcance atual dos princípios constitucionais, dos direitos humanos e
fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu fundamento primeiro.
Sem embargo, nunca é demasiado insistir no fato de que resulta
epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade
humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a
natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da
moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da liberdade. De
fato, a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser
digno de algo.
Dito de outro modo, ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna
de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um
amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o
que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é
digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão
popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno,
sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer
nada.
De todos os modos, palavras como “dignidade”, ainda que privada de
conteúdo semântico, provocam secreção de adrenalina em determinados juristas
acadêmicos e proclives à retórica. Resulta inclusive muito difícil aceitar a
própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão consiste em que tal noção
obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um
reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por
ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio
existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão
prática pura sobre a natureza da moralidade.
Ora, o
fundamento da moral e do direito não está na dignidade abstrata, senão na
expressão social de nossa natureza, na plasticidade neuronal concreta de nosso
cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir,
de gozar e sofrer. Daí que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica)
coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica
acerca da natureza humana, sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão
revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.
Assim que a
promoção de uma cultura fundada na exaltação da dignidade humana e do respeito
pelo próximo somente será possível com o apoio e o desenvolvimento de uma
práxis que permita, ademais de situar no humano um valor incondicional,
entender, justificar e lutar por uma cultura de liberdade, de igualdade material
e de fraterna solidariedade. Isto é, da
necessidade não somente de lutar por nossos direitos, mas também de assumir
responsavelmente nossos deveres, de respeitarmos (desinteressadamente) o próximo
como um fim em si mesmo, de um ardente
desejo de compreender e outorgar sentido ao sofrimento humano e de aspirar por
uma efetiva e legítima realização da justiça
ou, para dizer em termos mais modestos e realistas: de lutar contra toda
e qualquer forma de
injustiça.
E assim entendida, a primazia hermenêutica que joga a “dignidade humana”
como critério fundante dos valores e princípios contidos na Constituição da
República se converte desta maneira em garantia levantada pelo constituinte frente
a um perigoso formalismo (por exemplo, o da igualdade puramente formal). Para
evitá-lo, este sistema axiológico-normativo fundado na dignidade humana, impõe
que as normas, tanto constitucionais como de outra ordem, sejam interpretadas
de forma que não colisionem com os valores e princípios superiores, mas, pelo
contrário, promovam sua efetiva realização.
Daí que a
melhor doutrina constitucionalista se afirma no sentido de reconhecer o transcendental
papel que está chamado a desempenhar, no contexto desse sistema de valores e
princípios constitucionais, o princípio do respeito incondicional da dignidade
humana. A tais princípios constitucionais se lhes reconhece um caráter
normativo e vinculante, por meio dos quais se deve cimentar e promover o
desenho de um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais
amigável possível com os traços característicos da natureza humana e destinado
à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Desta maneira, cumprem também uma função
pragmática e dinâmica, permitindo assim a adaptação dos preceitos
constitucionais às realidades sociais cambiantes e às características
individuais concretas. Em outras palavras, não somente hão de ser considerados
parâmetros de constitucionalidade do resto das normas do sistema jurídico,
senão também - e principalmente tendo em conta seu peculiar talante de modelo
ético-político aberto - como meios aptos a aportar valores de cidadania e de
metodologia jurídico-política essencialmente útil para tomar o direito como um
instrumento de construção social e, muito particularmente, para assimilar os
câmbios formais e materiais no processo de tomada de decisões ante a dinâmica
fluída (e por vezes enlouquecida) do “mundo da vida” cotidiana.
Estamos convencidos de que o
êxito ou o fracasso da norma constitucional depende em grande medida do modo
como as instituições que governam a vida pública sejam capazes de incorporar
esta perspectiva da dignidade humana em leis, estratégias (sociais, econômicas
e políticas) e decisões jurídicas dirigidas a formular um desenho institucional
e normativo que, evitando ou reduzindo as diferenças humanas, permita a cada um
conviver (a viver com o outro) na busca de uma humanidade comum. O mesmo é
dizer que não se pode falar de dignidade da pessoa humana se isso não se
materializa em suas próprias condições materiais de vida, com liberdade e
igualdade de oportunidades em uma sociedade fraterna e solidária, no contexto
de um conjunto normativo prenhado de valores e princípios que a asseguram de
forma prioritária: combater as desigualdades reais e deixar a vida, na medida
do possível, fluir livre e igualitariamente, ou seja, dignamente.
Desigualdade e discriminação positiva
Portanto,
parece ser que a solução da aparente contradição entre princípios a que nos
referíamos no início deste artigo está em tratar de alcançar um estado de coisas
em que o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas consequências
sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a desigualdade
material entre os membros de nossa espécie
, isto é, de não se (re) produzir a desigualdade quando seja possível
prevení-la, e que aquela que seja inevitável se minimize e grave com moderação
aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos.
Isto significa
um compromisso mais específico do Judiciário com relação aos interesses e
liberdade dos menos favorecidos na sociedade – ademais, o aspecto mais
importante da eqüidade – e o rechaço espontâneo e reflexivo da igualdade
meramente formal. Do contrário, a persistir as versões tendenciosas, vazias e
fragmentadas do princípio da igualdade - cuja gênese e funcionamento cabe
situar na história evolutiva própria de nossa espécie -, continuaremos imersos
no escuro poço da ignorância humana: “ quando o dedo mostra a lua”, diz um
conhecido provérbio, “o imbecil olha para o dedo”. No caso, olha para a
“justiça”, em vez de olhar para o que a justiça designa e o que lhe constitui:
a liberdade, a igualdade e a fraternidade; ou seja, ele se engana sobre a
justiça, que o fascina, e desconhece o real e necessário: a dignidade da pessoa
humana.
* Pós-doutor
[1]Doutora
Æ Para a consulta da referência bibliográfica
relativa aos autores citados neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito e natureza humana. As bases
ontológicas do fenômeno jurídico, Curitiba, Ed. Juruá, 2006; Atahualpa
Fernandez e Marly Fernandez: Neuroética,
Direito e Neurociência, Curitiba: Ed. Juruá, 2007.
[2] Por
exemplo, a norma da CLT que garante à mulher descanso de 15 minutos antes de
iniciar a jornada extra e que, segundo informação publicada na imprensa,
trata-se de um tema recentemente debatido entre os ministros que compõem a
Seção Especializada
[3] A
autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em
nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os
adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto, não
nos são alheios ou impostos por outros (H. Frankfurt). Para citar a advertência
de Martha Nussbaum: “En gran parte del mundo las mujeres están privadas de los
medios de sostén indispensables para el ejercicio de las funciones
fundamentales necesarias para una vida realmente humana. Están menos protegidas
que los hombres, son más vulnerables a la violencia física y a los abusos
sexuales. Es mucho menos probable que sean escolarizadas, y es todavía menos
probable que puedan tener una instrucción técnica o profesional. Si deciden
entrar en el mundo del trabajo, deben afrontar obstáculos mayores, entre los
que se cuentan la intimidación por parte de la familia o del cónyuge, la
discriminación sexual en el momento de la admisión, el acoso sexual en el lugar
de trabajo; todo esto, muy a menudo, sin la posibilidad de recurrir eficazmente
a la ley… Asfixiadas a menudo por la doble jornada de trabajo, que suma la
fatiga del trabajo externo a la íntegra responsabilidad del trabajo doméstico y
del cuidado de los niños, están privadas de la posibilidad de encontrar
momentos de ocio en los que cultivar las facultades imaginativas y cognitivas…”
[4] Note-se, neste particular, que
tanto em situações experimentais como de observação, já se demonstrou que o
objetivo da justiça baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras
considerações contrapostas. Inclusive o princípio básico do comportamento
humano que consiste em maximizar o próprio benefício é rechaçado em favor de
maximizar uma distribuição equitativa (um princípio da igualdade): alguns
estudos indicaram que, ademais de sentir-se desgraçadas quando obtêm menos do
que crêem que merecem, as pessoas se sentem verdadeiramente incômodas quando
obtém mais do que merecem ou quando outras pessoas obtêm mais ou menos do que
merecem. Em síntese, dado um conjunto determinado de condições qualificativas,
as pessoas sempre tratarão de atuar de uma maneira que pareça justa, quer
dizer, igualitária (Clayton e Lerner).
[5] Nesse
sentido, a própria definição de “dignidade do homem” – enquanto categoria de
núcleo axiológico central da ordem constitucional – será mais bem delimitada –
quer seja em sua dimensão ontológica, ética e política – com o recurso à
essência da “natureza humana”. Não obstante, muitas pessoas se opõem à perspectiva biológica sobre a natureza humana porque temem que esta perspectiva, à margem de seus fundamentos fáticos, teria conseqüências sociais adversas. A
perspectiva centrada na socialização, crêem (desafortunadamente), é mais acorde
com as idéias liberais da autonomia e da
dignidade do ser humano. Como lembra Noam Chomsky, a concepção do entendimento
humano como uma tabula rasa é um
poderoso instrumento em mãos do totalitarismo: se as pessoas são em realidade
seres maleáveis, infinitamente adaptáveis e acomodados, sem nenhuma essencial
natureza psicológica, então, por que não hão de ser controlados e coagidos por
aqueles que se arrogam autoridade, conhecimentos especiais e uma clarividência
única sobre o que mais convém aos que são menos esclarecidos?
[6] Nesse
sentido, p. e., basta a literatura antropológica para demonstrar que há uma notável
coerência intercultural nas diferenças sexuais ( que se estendem ao
temperamento e ao comportamento) entre homens e mulheres; e as literaturas
biológica e psicológica também estão repletas de dados que revelam fortes
diferenças entre os sexos . Para dizer rápido e objetivamente: algumas
feministas temem que as explicações evolucionárias possam promover a
desigualdade sexual. Tal temor não cremos que esteja justificado. Em termos
evolutivos, as mulheres são idênticas aos homens na maioria dos aspectos. Diferem
– o que exclui a possibilidade de que sejam melhores ou piores – naqueles
campos em que se enfrentaram de forma continuada a problemas adaptativos
diferentes durante a larga evolução humana (as mulheres diferem em suas
preferências e estratégicas sexuais, por exemplo). Em verdade, a divisão de
trabalho por sexo não só não é sintoma de preconceito – pois ocorre na maioria
das sociedades igualitárias – como foi um passo essencial nos primórdios da
evoluçao da nossa espécie. E porque sem ela teríamos sido incapazes de
sobreviver nas savanas, é muito provável que tenhamos desenvolvido diferentes
corpos e mentes para combinar com o modo de vida de cada sexo. Sobre a questão
da desigualdade sexual e trabalho, Browne; para uma abordagem mais geral acerca
dessa questão, Daly e Wilson; Wright.
[7] Nas
palavras de Alexy, nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua
aplicação. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Se
se quer obter um modelo completo, deve-se agregar aos pilares passivos um
ativo, referindo-se ao procedimento de interpretação, de justificação e de
aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras e
dos princípios têm de ser completados por um terceiro: o de um processo de
concreta realização do direito e a correspondente (e iniludível) dimensão subjetivo-individual
(neuronal) do jurista-intérprete. Dito de outro modo, seja com Gadamer ou
Dworkin, porque direito é interpretação, não há direito que não seja direito
aplicado.