Fernando Machado da Silva Lima
Professor Assistente de Direito Constitucional da UFPa.
24.08.1986
Consideramos
juridicamente exótica e muito estranha a exegese que vem sendo proposta a
respeito do reajustamento semestral dos subsídios dos vereadores, no sentido de
que, fixada sua remuneração para a legislatura seguinte, no entanto esses
valores não serão imutáveis, podendo ser reajustados,
semestralmente, durante a legislatura, pelos próprios vereadores, segundo os
critérios legais. E porque assim a consideramos, tomamos a liberdade de
oferecer nossa opinião, na esperança de podermos contribuir para a descoberta
da verdade jurídica e para o respeito às normas da Constituição Federal.
Parece-nos
necessário esclarecer, inicialmente, o verdadeiro significado dos verbos fixar e estabelecer constantes do
art. 15, §2o, da Constituição Federal Brasileira, que dispõe:
“A remuneração dos vereadores será fixada pelas respectivas Câmaras Municipais para a legislatura
seguinte, nos limites e segundo critérios estabelecidos em Lei Complementar”,
bem
como do art. 33, “caput”, no qual a
Constituição, em relação aos congressistas federais, estabelece que:
“O subsídio, dividido em parte
fixa e parte variável, e a ajuda de
custo dos deputados e senadores serão iguais e estabelecidos no fim de cada legislatura para a subseqüente”.
O Aurélio consigna, dentre os diversos
empregos do verbo fixar, os
seguintes: determinar, prescrever, fixar regras; firmar, assentar, estabelecer;
tornar firme, estável, permanente; que não varia, constante, dominante,
definido, determinado.... Nenhum, porém, no sentido de que, embora fixo, algo
poderia ser reajustado, nem no de que, embora estabelecido para vigorar durante
quatro anos, um subsídio pudesse, contudo, ser semestralmente revisto.
O mesmo
pode ser dito do verbo estabelecer,
que entre outras coisas, significa: fazer estável, firme, fixar, estabilizar;
determinar, assentar, fixar; organizar, dispor, ordenar, mandar, determinar;
pôr em vigor, vulgarizar; firmar, celebrar; tomar forma estável e permanente.
Observamos,
na oportunidade, que desde 1.978 vem o Congresso Nacional, com base em uma
Resolução (inconstitucional, segundo o nosso entendimento), desobedecendo essa
vedação constitucional, constante do art. 33, “caput”, acima transcrito.
O
Estado do Pará adotou o mesmo entendimento, a partir de novembro de 1.978,
quando a Assembléia Legislativa do Estado, através de decreto legislativo,
permitiu o reajuste dos subsídios e da verba de representação do Governador e
do Vice-Governador do Estado, bem assim o dos subsídios e da ajuda de custo dos
membros da Assembléia Legislativa do Estado do Pará, “nas mesmas épocas e segundo as mesmas bases estabelecidas para os
vencimentos dos funcionários federais”..
Nessa
oportunidade, publicamos, exatamente em 04.12.78, no “O Liberal”, artigo
intitulado “A Fixação dos Subsídios”, no qual opinamos pela
inconstitucionalidade das referidas disposições, em face da norma do art. 33, “caput”,
da Constituição Federal, que exige a fixação, ou o estabelecimento, da ajuda de
custo e do subsídio, no fim de cada legislatura, para vigorarem durante a
subseqüente.
As
Constituições Brasileiras sempre se preocuparam com o problema. Assim, a do
Império, em seu art. 39, estabelecia que:
“Os deputados vencerão, durante
as sessões, um subsídio pecuniário taxado no fim da última sessão da legislatura antecedente. Além
disto, se lhes arbitrará uma indenização para as despesas de vinda e volta”.
A
Constituição de 1.891, em seu art. 22, dizia que
“Durante as sessões vencerão os
senadores e o deputados um subsídio pecuniário igual, e ajuda de custo que serão fixados pelo Congresso no fim de cada legislatura, para a seguinte”.
Também
a Constituição de 1.934, em seu art. 30:
“Os deputados receberão uma
ajuda de custo por sessão legislativa
e durante a mesma perceberão um subsídio
pecuniário mensal, fixados uma e outro
no último ano de cada legislatura
para a seguinte”.
A
Constituição de 1.937 abandonou essa norma, revigorada porém em 1.946, sempre
estabelecida a fixação no fim de cada legislatura (art. 47). Na
Constituição Federal vigente, a regra é a do art. 33-
“O subsídio, dividido em parte
fixa e parte variável, e a ajuda de
custo dos deputados e senadores serão iguais e estabelecidos no fim de
cada legislatura para a subseqüente”...
A
Constituição do Estado do Pará também se preocupou em dizer que
“O subsídio, dividido em parte
fixa e parte variável, e a ajuda de custo
dos deputados serão estabelecidos no fim
de cada legislatura para a subseqüente”.
Quanto aos Municípios, a regra é a do já
transcrito art. 15, cujo parágrafo 2o. também manda fixar os
subsídios para a legislatura seguinte.
Qual
seria o motivo da preocupação, manifestada desde o Império, pelos Constituintes?
A nosso ver, simplesmente a de expungir do mandato legislativo qualquer
conotação de sinecura política e garantir a independência do órgão legiferante,
que não pode ficar à mercê das autorizações executivas, para o reajuste dos
subsídios de seus membros, mas não deve também ser obrigado a reajustar seus
próprios subsídios, pela repercussão política negativa que isso poderia trazer.
Tradicionalmente, assim, a fixação dos subsídios sempre foi feita anteriormente à própria eleição dos
congressistas, nos termos das normas transcritas: fixar para a legislatura seguinte...
Cláudio
Pacheco, em seu “Tratado das Constituições Brasileiras” (volume V, pp. 305 e
seguintes), afirma que
“...as preceituações de direito
positivo sobre o estabelecimento e a fixação dos subsídios dos congressistas
determinam cautelas especiais com o objetivo de conseguir que estas
providências não escapem a um nível
mínimo de isenção, desinteresse e decência”...e que ...”ao mesmo tempo procura alcançar um nível de
decência ao determinar que ambas as
parcelas do estipêndio serão fixadas no fim de cada legislatura, para vigorar
em relação aos congressistas que vão ser eleitos para o seguinte período. Presume-se assim que o congressista, cujo
mandato vai terminar, não fixará remuneração para si mesmo, embora a esperança
ou certeza de reeleição possa frustrar em larga margem este objetivo de
decência e desinterêsse”
Diversos
artifícios e distorções têm sido adotados, de há muito, para contornar a
aplicação rigorosa do preceito em questão, mesmo no plano federal. Assim é que
o Excelso Pretório teve oportunidade de se manifestar em Acórdão unânime
proferido em 4 de junho de 1.959 (Rev. For., vol. 195, pp.133/138):
“Exigindo a fixação do subsídio,
bem como da ajuda de custo fim de cada Legislatura, a Lei Básica quis preservar
o legislador da pecha de legislar em causa própria, deixando-se influenciar
pela cobiça, que é sentimento fatal à natureza humana e, do ponto de vista
jurídico, simplesmente imoral. Assim, é defeso ao legislador, por artifício,
desdobrar o subsídio, dando-lhe a designação que lhe pareça mais consentânea ou
mais sonora, a fim de aumentá-lo”.
A
discussão é portanto antiga e muitas artifícios e exegeses têm sido utilizados
para burlar a norma constitucional. Não seria o caso de através de uma reforma
no texto constitucional, deixá-lo em consonância com a nova realidade, de
preferência a tentar desesperadamente torcê-lo para provar que diz exatamente o
contrário do que parece?
Recordando
agora o ocorrido há dois ou três anos, quando em face da necessidade de
justificar a criação de empréstimo compulsório através de Decreto-lei, que
deveria vigorar imediatamente, em flagrante desrespeito ao princípio da
anualidade, “pareceres jurídicos” distingüiram os casos excepcionais definidos em lei complementar (Constituição Federal,
art. 18, §3o.), dos casos especiais,
também definidos em lei complementar (Constituição Federal, art. 21, §2o,
II), para “provar” que somente em relação a estes últimos seriam aplicáveis as
disposições constitucionais relativas aos tributos e às normas gerais de
direito tributário, somos tentados a imaginar um “argumento” para auxiliar a
defesa da tese favorável à legalidade do reajustamento semestral dos subsídios
dos vereadores: bastaria, com efeito, que fizéssemos a distinção entre os
verbos fixar e estabelecer, para provar que em relação aos Municípios, quando a
Constituição emprega o verbo fixar, deixou aos vereadores a possibilidade de
reajustarem semestralmente seus subsídios e sempre de maneira proporcional ao
crescimento da arrecadação municipal, como uma espécie de participação nos
lucros, ou de gratificação de produtividade.
O
Deputado Djalma Marinho, em voto na Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara dos Deputados (1.946), reconhecia entre outras coisas que:
“A inalterabilidade do que dispõe o art. 47 e
seus parágrafos é invencível a qualquer proposição que se aventure a deslocar
aquele princípio. Sem a revisão constitucional, por mais que se mascare ou se
dissimule a proposição, é impossível, nos quadros vigentes, que no curso de uma
legislatura, se possa rever a forma de pagamento dos subsídios e da ajuda de
custo contidos no art. 47 e seus parágrafos da Constituição Brasileira... Fica
o Congresso na alternativa alarmante de permanecer fiel aos cânones
constitucionais ou então ladeá-los, através de proposição que atenda aos reclamos e às necessidades
dos representantes; estes, para conservar o decoro parlamentar e dar rendimento
e eficácia à representação que lhes outorgou o povo, devem possuir um mínimo de
condições financeiras somente possíveis de percepções através dos respectivos subsídios. É impossível,
constitucionalmente, a revisão sob qualquer hipótese, do subsídio e da ajuda de
custo, fixados na legislatura anterior para a seguinte pelos componentes desta.
Somente a emenda constitucional – que não aconselhamos – permitiria deslocar a
inalterabilidade das regras fixas no art. 47 e seus parágrafos da Constituição
da República”.
Especificamente
a respeito da remuneração dos vereadores, restabelecida após longos anos pela
Emenda Constitucional nº 4, de 23.04.75, devemos ainda examinar as disposições
constantes das diversas leis complementares que têm regulado a matéria, em
obediência ao §2o. do art. 15.
Assim, a Lei Complementar nº 25, de 02.07.75, estabeleceu critérios para
a fixação da remuneração dos vereadores, mas repetiu a norma constitucional em
seu art. 1o, estabelecendo que as Câmaras Municipais deveriam fixar
a remuneração dos vereadores no final de cada legislatura, para vigorar na
subseqüente. A Lei Complementar nº 45, de 14.12.83, em seu art. 1o,
estabeleceu que a despesa com a remuneração dos vereadores não ultrapassará 4%
(quatro por cento) da receita efetivamente realizada no exercício imediatamente
anterior. Finalmente, o art. 2o. da Lei Complementar nº 50
estabeleceu que a remuneração dos Vereadores seria semestralmente revista pelas
Câmaras Municipais, de acordo com os balancetes contábeis fornecidos pelas
Prefeituras, o que, em outras palavras, significa que as Câmaras Municipais,
informadas a respeito do total da receita efetivamente realizada pela
Secretaria Municipal de Finanças, imediata e zelosamente deveriam providenciar
para que a despesa com sua remuneração não se afastasse do limite máximo fixado
pela Lei Complementar, isto é, dos 45 da receita efetivamente realizada.
Parece-nos
muito difícil conciliar a norma do §2o da Lei Complementar no. 50/85
com a do §2o. do art. 15 da Constituição Federal, haja vista que não
conseguimos entender como o subsídio, fixado
para vigorar durante a legislatura
inteira, quatro anos, poderia ser semestralmente atualizado, pelos próprios
vereadores, em causa própria e de acordo com o aumento da arrecadação
municipal.
Parece-nos,
na verdade, impossível, entender como constitucional tal reajustamento, mesmo
que continuasse a vigorar o sistema de inflação desenfreada “revogado” pelo
decreto-lei editado em fevereiro próximo passado pelo Presidente da República.
Parece-nos,
da mesma forma, inteiramente impossível defender que uma Lei Complementar possa
revogar um dispositivo constitucional, pelo simples fato de que se trate de uma
lei posterior e que declare, em seu art. 4o.: “Revogam-se as disposições em contrário”.
Parece-nos,
pelas mesmas razões, inteiramente inconstitucional a Resolução no. 01/86, da
Câmara Municipal de Belém, datada de 19.05.86, embora respaldada em diversos
pareceres jurídicos, emitidos anteriormente à edição do Decreto-lei no. 2284/86, vulgarmente conhecido como
“pacote do cruzado”, o que consideramos até certo ponto irrelevante, salvo pelo
fato de que hoje, inexistindo inflação, ou sendo esta muito mais reduzida,
pareceria muito mais imoral reconhecer aos Vereadores o direito a um
reajustamento semestral proporcional ao incremento da arrecadação municipal.
Afinal,
a lei como expressão da vontade popular deve ser precisa em seus termos e em
relação aos fins sociais que pretenda alcançar, para que possa ser
interpretada, quer administrativa, quer contenciosamente, em consonância com os
superiores interesses sociais, posto que um dos princípios basilares de nosso
ordenamento jurídico-constitucional é exatamente o de que todo poder emana do
povo e em seu nome será exercido (Constituição Federal, art. 1o.,
parágrafo 1o.), o que vale dizer que será exercido no seu interesse
e para o seu benefício e nunca visando exclusivamente mesquinhos e excusos
interesses particulares.
Afinal,
todo legislador – federal, estadual
ou municipal – tem um direito público subjetivo de percepção de um estipêndio
condigno, em face da própria relevância da função que desempenha, e que lhe
possa oferecer condições de independência para o desempenho de seu mandato,
tanto quanto merecem igualmente os magistrados
federais ou estaduais vencimentos condignos e irredutíveis, nos termos
constitucionais.
A
independência dos Poderes Legislativo e Judiciário estará, contudo, seriamente
comprometida, tanto quando os legisladores têm que legislar em causa própria,
para reajustar seus próprios subsídios, como quando os magistrados, graças a
uma interpretação forçada do princípio constitucional da irredutibilidade de
vencimentos, passam a perceber a gratificação adicional por tempo de serviço
calculada cumulativamente, de modo que enquanto qualquer funcionário público,
aos trinta e cinco anos de serviço, tem direito a um adicional de apenas 35%, o
magistrado recebe 140% (cento e quarenta por cento)!
Isso
não beneficia realmente a ninguém, nem aos membros do Poder Legislativo, nem
aos do Poder Judiciário, nem ao próprio Executivo, nem ao Estado, nem ao
jurisdicionado, nem à própria ordem jurídica.
Esperemos
que a Nova República, que alardeia intenções, coerentemente promova a revisão
dessas normas, restaurando assim o império da Constituição e da lei e a própria
credibilidade do Governo.
e.mail: profpito@yahoo.com