A Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e a proposta de instituição de um Exame de Habilitação para o Exercício da Medicina no Brasil

 

Prof. Dr. Milton de Arruda Martins Presidente da ABEM

 

 A proposta de realizar um exame (ou exames) para médicos recém formados, seguindo o exemplo do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, tem sido muito discutida. Esta proposta tem várias versões e, de uma forma geral, trata-se de introduzir no Brasil a exigência de que o estudante de Medicina, após receber o seu diploma, tenha que se submeter a um exame e apenas no caso de ser aprovado poder registrar seu diploma no Conselho Regional de Medicina e ser habilitado a exercer a profissão de médico. Este exame tem sido chamado por vários nomes, “Exame de Ordem”, “Exame de Qualificação”, “Exame de Habilitação”, “Exame de Proficiência em Medicina”.

 

Existem projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, como o Projeto de Lei do Senado número 217, de 2004, que visa instituir o “Exame Nacional de Proficiência em Medicina” e o Projeto de Lei da Câmara Federal número 4342, de 2004, que visa instituir o “Exame de Habilitação para Exercício da Medicina”.

 

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo decidiu realizar, em caráter experimental, um “Exame de Habilitação”, para alunos de Medicina que estejam cursando o sexto ano de faculdades localizadas no Estado de São Paulo e médicos formados há menos de um ano. Este exame terá duas fases, uma prova objetiva e uma avaliação prática, e a primeira fase será realizada no dia 9 de outubro próximo.

 

A ABEM tem discutido em profundidade o tema, em suas reuniões de diretoria, em seus encontros e congressos regionais, e com especialistas e dirigentes de outras entidades médicas e de estudantes de Medicina, e vem a público manifestar sua posição contrária à instituição imediata no Brasil de qualquer tipo de Exame de Habilitação, realizado após o final do Curso Médico.

 

Reconhecemos a existência de vários problemas no ensino médico brasileiro que necessitam de urgente solução, principalmente a necessidade dos governos federal e estaduais de não autorizar a abertura de novas escolas médicas e de fechar as escolas médicas que não possuem condições mínimas de funcionamento e de formação de médicos de qualidade.

 

Nos últimos anos, em especial durante a gestão do Ministro Paulo Renato, houve autorização pelo MEC para abertura de grande número de escolas médicas. Levantamento realizado pela Associação Paulista de Medicina revelou que durante o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso foram autorizados 42 novos cursos de Medicina, sendo 11 em instituições públicas e 31 em instituições privadas. Desde o início do Governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva já foram autorizados 21 novos cursos de Medicina, sendo 3 em instituições públicas e 18 em instituições privadas.

 

A ABEM reconhece, também, a necessidade de aperfeiçoar o sistema de avaliação das escolas médicas, e tem contribuído de forma intensa nesse sentido. Ao mesmo tempo, a ABEM considera muito importante aperfeiçoar as avaliações dos alunos feitas ao longo dos seis anos do curso médico. As escolas médicas só devem fornecer diploma aos estudantes que tiverem os conhecimentos, as habilidades e as atitudes estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Medicina, que são os princípios orientadores para a formação médica em nosso país.

 

À primeira vista, muitos problemas da formação médica no Brasil seriam resolvidos com a obrigatoriedade de um Exame de Habilitação. Só poderia exercer a profissão quem fosse aprovado nesse exame e a sociedade estaria protegida contra médicos de formação deficiente. Entretanto, uma análise um pouco mais profunda revela que essa solução pode, ao contrário, contribuir para piorar substancialmente o ensino médico em nosso país. Um exame desse tipo terá um impacto muito importante no comportamento dos estudantes de Medicina, em especial nos últimos anos do curso. Preparar-se para o exame passará a ser a preocupação central de nossos alunos.

 

É muito provável que haja proliferação de cursinhos preparatórios para o Exame de Habilitação e os alunos passem a estudar os conteúdos que mais provavelmente serão exigidos no exame e se dedicarão menos às atividades práticas, à sua formação integral, ao seu treinamento nos ambulatórios, enfermarias e unidades de emergência. Em vez de contribuir para melhorar a formação dos médicos, o Exame de Qualificação poderá contribuir para piorá-la. Há o exemplo próximo dos exames de Residência Médica: muitos estudantes dos últimos anos do curso, preocupados com sua aprovação nesses exames, acabam por dedicar-se mais a estudar para o exame do que com sua formação prática. Não pode ser esquecido também o brutal impacto que o vestibular tem sobre o ensino do segundo grau.

 

 Um exame influencia decisivamente o comportamento dos estudantes e seu conteúdo tem que ser discutido com muito cuidado e profundidade: pode pretender-se um impacto positivo e o resultado ser um impacto negativo sobre a formação. Apesar de haver diferenças importantes entre a formação dos médicos e dos advogados, é inegável que a instituição do Exame de Ordem pela Ordem dos Advogados do Brasil fez com que diminuísse a preocupação com o número e a qualidade das escolas de direito em nosso país. Existem hoje numerosas escolas de direito de baixa qualidade e que dão enormes lucros a muitos empresários do ensino superior.

 

A instituição de um Exame de Habilitação para o exercício da Medicina é de alto interesse para muitas empresas que se dedicam ao ensino superior. Muitos empresários desse setor imaginam que terão muito mais facilidade em obter autorização para abertura de novos cursos de Medicina ou para aumento de vagas dos existentes caso haja um Exame de Habilitação.

 

É fundamental, também, avaliar o que aconteceria com aquele que concluiu um curso de Medicina e não foi aprovado no Exame de Qualificação. Surgirá um novo personagem, o bacharel em Medicina. O que ele poderá fazer e o que ele não poderá? Os Conselhos Regionais de Medicina passarão a ter uma nova e intensa atividade, coibir o exercício ilegal da Medicina por parte desses profissionais. É importante ressaltar que o bacharel em direito tem várias opções profissionais, não apenas a de ser advogado: pode ser, por exemplo, juiz, promotor, delegado, havendo formação específica para cada uma dessas profissões. Estabelecer que o critério decisivo para o exercício da profissão de médico seja a aprovação em um exame realizado após receber o diploma tira a responsabilidade das escolas médicas pela eventual formação insuficiente e elas devem ser as principais responsáveis por essa formação.

 

A ABEM considera que há outras prioridades para tornar a formação de nossos médicos de melhor qualidade e de acordo com as necessidades de nossa sociedade:

- Estabelecer o número de médicos que o Brasil realmente necessita formar por ano e adequar o número de vagas nas escolas médicas a essa necessidade. Existe um grande prejuízo à sociedade quando existem médicos em número insuficiente, mas também quando existem médicos em excesso.

 - Estabelecer o número de especialistas de cada área e formá-los com qualidade, nos programas de Residência Médica.

- Aperfeiçoar cada vez mais o sistema de avaliação das escolas médicas.

 - Aperfeiçoar a avaliação dos estudantes de Medicina pelas escolas médicas, com avaliações constantes e formativas de conhecimentos, habilidades e atitudes.

- Incentivar e colaborar com todas as escolas médicas na implantação das Diretrizes Curriculares.

 

Talvez o mais importante seja os governos federal e estaduais assumirem o seu papel: não permitir a abertura de novas escolas médicas sem uma clara demonstração de sua necessidade, que inclua a aprovação pelo Conselho Nacional de Saúde. Devem, também, promover a avaliação adequada das existentes, determinar o fechamento das escolas que não tiverem condições mínimas de funcionamento e oferecer condições de excelência às escolas públicas, que são de sua responsabilidade direta.

 

Reconhecemos a atuação do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo no sentido de contribuir para o aprimoramento da formação médica. Entretanto, consideramos que sua decisão de promover um “Exame de Habilitação” deveria ser revista. Não há necessidade de fazer um exame para avaliar se é possível fazer um exame desse tipo. Algumas das nossas mais tradicionais escolas médicas realizaram, neste ano, exames de residência com parte objetiva e parte prática, houve centenas ou milhares de candidatos e estas instituições provaram que é possível fazer uma avaliação prática bem feita, não há necessidade de demonstrar o que já foi demonstrado.

 

Como experimento para avaliar os conhecimentos, habilidades e atitudes dos alunos do sexto ano das escolas médicas do Estado de São Paulo também há problemas. Há uma grande probabilidade de haver um vício de seleção, uma vez há um número importante de estudantes que não farão o exame por discordarem dessa proposta.

 

Mas o problema mais importante é que se cria uma situação de fato, é criado um exame sem antes haver uma discussão mais profunda que envolva todas as entidades interessadas em aprimorar a formação médica. Cria-se, inclusive, um temor nos estudantes do sexto ano, que ficam preocupados em não fazer o exame porque ele poderia ser utilizado na seleção para algum programa de Residência Médica ou o seu resultado ser exigido por empregadores.

 

O caminho proposto pela ABEM é que a discussão sobre a implantação ou não de um Exame de Habilitação para médicos seja uma discussão nacional e não regional, e que envolva as entidades profissionais, as escolas médicas, os estudantes de medicina, médicos residentes e a sociedade. Essa discussão deve ter como princípio a busca da melhor alternativa para que a sociedade tenha acesso a médicos formados de acordo com as Diretrizes Curriculares, competentes, éticos, humanos, socialmente responsáveis e adequados às necessidades de nossa sociedade.

 

       Avaliar em um único momento, no final de toda a formação, é uma estratégia de avaliação inadequada e anacrônica. A avaliação deve ser feita em vários momentos do curso médico, com variados instrumentos de avaliação, que possam medir a aquisição de conhecimentos, de habilidades e atitudes médicas. A avaliação deve ser formativa, o avaliado deve ter sempre um retorno de sua avaliação para que possa se recuperar e a instituição deve ser responsável por essa recuperação. A ABEM propõe-se a liderar uma discussão nacional sobre o aprimoramento da avaliação do estudante de Medicina, com a criação de instrumentos de avaliação de conhecimentos, habilidades e atitudes que sejam aplicados em vários momentos do curso médico. O estudante que fosse insuficiente em uma dessas avaliações poderia se recuperar e ser novamente submetido a ela e o responsável pelo suporte e formação dos alunos seria, é claro, a sua escola médica.

 

Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2005