OAB se calou na hora mais sombria da ditadura

O regime militar soube reconhecer o apoio dos aliados civis. Como prova, nomeou quatro dias após a decretação do AI-5 o advogado Carlos Povina Cavalcanti para integrar a Comissão Geral de Investigações — cabia à CGI fazer “investigações sumárias para o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública”. Quatro anos antes, Povina assinara um fervoroso manifesto de apoio ao Golpe de 64. Sua nomeação levou para dentro do governo, no momento mais sombrio da ditadura, um destacado representante da entidade que, mais tarde, lideraria a luta pelo fim do regime. Povina era conselheiro nato da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e seu presidente nos primeiros anos após o golpe.

A reportagem é de Chico Otávio e publicada pelo jornal O Globo, 10-12-2008.

Chega às livrarias na semana que vem “Modernidades alternativas”, livro editado pela Fundação Getulio Vargas que terá um artigo dedicado ao papel da OAB entre 1964 e 74. Assinado pela historiadora Denise Rollemberg, da UFF, o texto sustenta que a postura histórica da Ordem pela redemocratização do país só começaria mais tarde, em 1972. Com base principalmente nas atas das reuniões do conselho, Denise afirma que Povina não estava sozinho no governo: vários presidentes de seccionais da OAB integraram também as subcomissões de investigações nos seus estados.

Ambigüidade nos primeiros anos

Na quarta reportagem da série sobre o papel dos civis no AI-5, o estudo da historiadora sustenta que, do golpe a meados dos anos 1970, o Conselho Federal da OAB oscilou entre o apoio ao regime, o silêncio e a crítica discreta às prisões arbitrárias e restrições às prerrogativas profissionais. Nos primeiros meses após o 13 de dezembro de 1968, diz a autora, a única referência contra o AI-5 se deu pela voz de Sobral Pinto, um simpatizante arrependido do golpe que travava uma briga solitária nas reuniões dos conselheiros.

— No mais, o silêncio foi a resposta da Ordem ao ato que eliminou o que ainda restara de direitos civis — disse Denise Rollemberg.

O estudo põe em xeque a memória construída em torno de uma importante organização civil sob a ditadura, até então concentrada na idéia de que a classe dos advogados não vacilara um só instante no enfrentamento do regime. As atas do Conselho e outras fontes de pesquisa mostram que não foi bem assim. A OAB chegou a ter um ex-presidente apontado como redator do AI2, Nehemias Gueiros, conselheiro nato da entidade.

Decretado em outubro de 1965, o AI-2 teve da Ordem muito mais do que a reação silenciosa que seria exibida três anos depois, com o AI-5. Como determinava a criação de cinco novas cadeiras no Supremo Tribunal Federal (STF), o ato abriu caminho para outro ex-presidente, Prado Kelly, tomar posse como ministro numa das vagas recém-criadas. Na ata da ocasião, os conselheiros “rejubilavam-se” pela escolha dos novos ministros, recrutados entre antigos advogados e ex-membros do Conselho Federal, propondo um “voto de louvor”.

As primeiras críticas ao regime surgiriam naquele ano. Curiosamente, não para denunciar os excessos, mas para cobrar uma postura mais firme em defesa dos ideais revolucionários.

Os conselheiros queriam o fim da subversão e da corrupção. Denise levantou que, em abril de 1965, o vicepresidente da Ordem, Alberto Barreto de Melo, discursando em homenagem a um conselheiro falecido, lamentou a presença de antigos colaboradores do governo Jango na administração pública: “Não sofria pelo que de limpeza fizera o movimento, alijando uns poucos dentre os chefes da corrupção e da subversão. Alijamento de gozadores da cousa pública não traumatiza a ninguém. O que traumatiza é vê-los preservados nos postos pela corrupção e pela fraude, muitos até integrando bloco parlamentar ‘revolucionário”.

Pouco depois, a conselheira Maria Rita Soares de Andrade declarou que recebia o AI-2 “como um ato de legítima defesa ditado pelo estado de necessidade em que se viu a revolução que tem o dever de preservar seus objetivos”.

— Na época, havia sentimento de que comunismo era inimigo da nação. Por isso, na sua visão mais conservadora, a Ordem apoiou a quebra da democracia, embora os advogados, na sua grande maioria, tenham atuado diariamente na denúncia do arbítrio e da tortura. Mas a história precisa ser contada, quer gostemos ou não. Não condeno quem apoiou o golpe. O problema é quem usufruiu — disse o atual presidente do Conselho Federal da Ordem, Cezar Brito.

Em 7 de abril de 1964, o Conselho Federal da OAB fez a primeira reunião ordinária após o golpe. Denise afirma que a euforia transborda das páginas da ata que registrou o encontro.

Definindo todos os conselheiros como “cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição”, o então presidente, Povina Cavalcanti, se diz “em paz com a nossa consciência”.

— Eles demonstravam a euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal — informa a historiadora.

Como outros setores da sociedade, a Ordem foi aos poucos perdendo a empolgação com o regime.

Porém, até o início dos anos 70, não houve sinal de ruptura.

O AI-5, decretado no fim do mandato de Samuel Vital Duarte, foi recebido com cautela. O primeiro ano do AI-5 teve à frente da OAB o presidente Laudo de Almeida Camargo (1969-71). Na primeira reunião após a decretação daquele que é o símbolo do fim dos direitos civis ainda existentes, inclusive do habeas corpus, não há registro sobre o AI-5.

O advogado Aurélio Wander Bastos, professor da UFRJ e da Candido Mendes, que está terminando o livro “A Ordem dos Advogados no Estado de Segurança Nacional”, reconhece que Laudo evitou se envolver diretamente na luta contra a ditadura, preferindo defender a vinculação do estudo do Direito ao desenvolvimento econômico. E justamente no ano em que o milagre econômico dava seus primeiros passos.

— Na 4a. Conferência da OAB, que ele chamou de “Direito e Desenvolvimento”, Laudo ficou no fogo cruzado. Ao mesmo tempo que enfrentou a a restrição dos velhos dogmáticos, da tradição romanista, foi acusado de querer engajar o Direito à proposta de Estado e desenvolvimento. Ficou sem os velhos companheiros do passado e não adquiriu a confiança das propostas ascendentes após o Ato 5 — sustenta o advogado.

Enquanto Laudo fugia do confronto com os generais, Aurélio Wander Bastos conta que o cenário jurídico era dominado pelo grupo liderado pelo então ministro da Justiça, Gama e Silva. Dele, também fizeram parte juristas consagrados, como Clóvis do Couto e Silva e Alfredo Buzaid.

— Eram os advogados da revolução — diz Wander.

Sobral Pinto, contudo, insistia solitariamente em provocar a Ordem. Na transmissão do cargo de presidente da entidade, em abril de 1969, ele renunciou à representação no Conselho e pediu para que fosse posta em debate, com a maior urgência, a proposta de condenar “um ato de força alta e profundamente lesivo à ordem jurídica estabelecida” na Constituição de 1967.

— Como a chapa estava quente, ninguém queria se queimar.

Mas Sobral aproveitou a eleição para botar a boca no trombone, exigindo que a OAB tomasse posição perante a humilhação que o Judiciário e Legislativo estavam sofrendo — diz a pesquisadora Marly Silva da Motta, do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Contemporânea do Brasil (CPDOC), que já escreveu um livro sobre a trajetória recente da OAB.

Mas o recuo não demoraria. Em plena vigência do AI-5, Laudo Camargo esteve em Portugal, onde foi recebido pelo ditador Marcello Caetano.

Na ocasião, a OAB se envolveu nas homenagens que seriam oficialmente prestadas a Caetano em visita ao Brasil.

— Claramente se vê que a OAB está pisando em ovos. Moderação não implica aceitar tudo. Depois de 68, a OAB passa a ter mudança lenta, inicialmente. Mais tarde, viraria uma opositora feroz — sustenta Marly.

Aurélio Wander Bastos disse que, gradualmente, o discurso de Sobral foi atraindo adeptos.

Segundo ele, em seguida ganharia força a figura de Miguel Seabra Fagundes, “grande articulador da abertura da Ordem”, e o presidente da época, José de Castro. O marco da ruptura foi o VI Encontro da Diretoria do Conselho Federal, de 31 de maio a 2 de junho de 1972. O documento firmou a OAB no campo da luta pela redemocratização.