OAB & BACHARÉIS EM DIREITO

Juiz
entende que exame da OAB é inconstitucional


Ao conceder liminar para que bacharéis em direito possam exercer a advocacia sem que sejam submetidos ao exame da OAB, o juiz federal Carlos Humberto de Sousa reacende polêmica sobre constitucionalidade dessa exigência

MARCOS BANDEIRA

Entendido pelas lideranças advocatícias como um dos vários pontos inovadores do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), estabelecido com a Lei 8.906/94, a obrigatoriedade do exame de ordem como caminho único para inscrição na OAB, desde o início, tem motivado discussões judiciais acerca de sua legitimidade constitucional.
Passados quase nove anos da obrigatoriedade do exame, ainda são comuns decisões favoráveis a questionamentos sobre a sua exigência, como a que foi concedida pelo juiz federal Carlos Humberto de Sousa, no dia 22 de janeiro.

Pela decisão, o titular da 3ª Vara Federal concede antecipação da tutela, determinando ao presidente da OAB, Seção de Goiás, Felicíssimo Sena, “a efetivação do registro dos impetrantes no quadro de profissionais da OAB, expedindo-se, sem ressalvas, as respectivas carteiras profissionais”. Entre os beneficiados estão os bacharéis em Direito, formados pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), Robson Rasmussen Silva e Nelson Fernando Rasmussen Silva.

Na ação, os autores pretendem a inscrição definitiva no quadro de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Goiás, sem a realização do exame de ordem, por terem concluído, com êxito, o curso de direito pela universidade mineira. No embasamento, os autores alegam que o exame fere preceito constitucional estabelecido no artigo 5º, razão pela qual requerem pronunciamento jurisdicional no sentido de excluí-los da exigência do exame, condição estabelecida por meio de lei ordinária — Lei 8.906/94 — que rege o estatuto da OAB.

O juiz Carlos Humberto de Sousa é conhecido pelas liminares que concedeu visando à quebra do confisco decretado pelo presidente Fernando Collor de Mello, que culminou com a antecipação pelo então presidente da República da liberação dos recursos confiscados. Também responsável por várias outras liminares contrárias ao exame de ordem, na decisão do dia 22 de janeiro, inovou ao defender mais uma tese: indenização para os advogados que forem impedidos pela OAB de terem seus registros inscritos por não terem feito o exame. Expõe, na decisão, o juiz federal: “Se a OAB está impedindo o registro profissional de um estudante que regularmente submeteu-se à Universidade, recebendo de quem de direito, legalmente, a outorga do respectivo grau acadêmico, deve suportar, por óbvio, uma indenização, por dano material e moral, examinando-se caso a caso”.

Em Goiás, segundo a OAB, pelo menos 20 liminares já foram desconstituídas. Para o presidente da OAB-GO, Felicíssimo Sena, a lei que determina ao advogado o exame de ordem é legal e não há como ser contestada. Ele conta que “a exigência do exame de ordem está nacionalmente pacificada através de decisões de todos os Tribunais Regionais Federais do Brasil e apenas poucos magistrados mantêm entendimento diferenciado, por convencimento personalíssimo”.

Felicíssimo Sena é incisivo: “O inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, que garante o livre exercício de todas profissões e ofícios, também estabelece que essa liberdade se submete às qualificações que a lei exigir. Para tanto, o artigo 8º da Lei 8.906/94, que rege a atividade advocatícia no Brasil, inclui a habilitação no exame de ordem entre as provas de qualificação para a inscrição como advogado”. O que, para ele, significa que o Exame da Ordem, além da regulamentação legal específica, tem base constitucional.

Não é o que entende o juiz Carlos Humberto de Sousa, em sua decisão. Ele lembra que em qualquer outra atividade profissional, depois que cola grau, o profissional está habilitado a exercer sua profissão, inclusive o médico. E o raciocínio do juiz é pertinente, pois, se do médico, que lida diretamente com o ser humano, numa situação em que o paciente muitas vezes depende desse profissional para continuar vivo, não se cobra nenhum tipo de exame semelhante ao da OAB, o que haveria de especial na classe dos advogados a exigir a tal seleção?

O juiz federal sustenta que se as universidades, bem como as faculdades, têm assegurado em seu favor uma autonomia didático-científica, conforme estabelece a Constituição, não há como não reconhecer que o bacharel formado nessas instituições encontra-se preparado para o exercício profissional ao qual se habilitou. Conseqüentemente, acrescenta o magistrado, o órgão de fiscalização profissional não tem competência ou poderes para dizer, antes da admissão no seu quadro, se esse ou aquele profissional tem ou não preparo suficiente para o exercício da profissão, pois isto significa permitir-lhe uma indevida invasão na autonomia dessas instituições.

Opinião da qual o presidente da OAB discorda completamente. Felicíssimo Sena lembra que não existe curso de advocacia, mas curso de graduação em direito, que habilita o bacharel a diversas atividades, quase todas elas com precedência de concurso. E questiona o argumento da autonomia universitária, que, segundo ele, não pode ser entendida de forma absoluta, a ponto de invadir competência de outras instituições: “É importante lembrar que muitos dos cursos de direito não são ministrados por universidades, e, sim, por escolas particulares que não têm a decantada autonomia”.

Alunos da UFG Se saem melhor No exame de ordem

Os alunos da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG) são os que têm o melhor aproveitamento no exame de ordem — com uma média quase sempre superior aos 60 por cento de aprovação —, assim como em concursos da área. Um dado importante, na opinião quase unânime dos profissionais ligados ao direito ouvidos pela reportagem, que remete à questão da baixa qualidade dos cursos — “massificado por inúmeras instituições de ensino duvidoso espalhadas pelo Brasil afora”, argumentam.

Mas esse é um problema, conforme entende, em sua decisão, o juiz federal, que cabe ao Ministério da Educação. Carlos Humberto de Sousa reconhece que muitas universidades não têm qualidade, mas não entende o argumento como justificativa para a exigência do exame da ordem. É o que escreve nos autos: “Não se venha argumentar que o aluno sai da faculdade incompleto, ou seja, sem o conhecimento amplo necessário ao exercício profissional. Esse argumento é ilegal, porquanto se o ensino superior está ou não deficiente, isto não é problema dos conselhos profissionais, seja qual for a área de formação do aluno. Isto é problema do Ministério da Educação, que tem a competência de fiscalizar o ensino superior”. O magistrado sugere que se a faculdade não está ensinando como devia, então que se provoque o MEC para que seja feita a avaliação da instituição, inclusive fechando-a se for o caso. “Mas o que não se admite é a intervenção dos conselhos profissionais na avaliação prévia da qualidade do profissional, para depois, inscrevê-lo ou não.”

Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, Benedito Ferreira Marques, ressalvando ser uma opinião pessoal, já que o assunto ainda não foi colocado em discussão pelo colegiado do curso, em virtude das férias na faculdade, não vê nenhum inconveniente relativo ao exame de ordem. E lembrando que a categoria de advogado é uma categoria à parte dentro do direito — “sendo essa uma justificativa para a existência da OAB” — sugere que a instituição especifique cursos de formação de advogados. Na sugestão do professor Benedito Marques, os cursos deveriam ser ministrados antes do exame de ordem.

Bendito Marques qualifica como corajosa a posição da OAB goiana em torno do tema e concorda com Felicíssimo Sena sobre o ponto da deficiência de parte do ensino de boa parte das instituições que oferecem cursos de direito: “São muitos os bacharéis formados a cada semestre. Se não há um meio de ‘joeiramento’, um mecanismo seletivo de avaliação para isso, a tendência é o comprometimento da qualidade profissional da nossa categoria de advogado”.

Cursos de direito nivelam por baixo, segundo advogado

Benedito Marques acredita que a seccional goiana da OAB está cumprindo o papel de busca pela qualidade do quadro de profissionais nela inscritos. Seu argumento tem por base o rigor do exame realizado pela comissão da OAB de Goiás. “A Seção de Goiás é uma das seccionais nacionais que tem conduzido com maior rigor o processo de seleção representado pelo exame de ordem. Tenho recebido notícias, por meio de conhecidos de outros Estados, dessa fama”, conta.

Corroborando a argumentação de Benedito Marques, o jurista Licínio Barbosa, apesar de “ver como respeitosos” os argumentos do juiz Carlos Humberto de Sousa, ressalva: “A Lei 8.906/94 ratifica a previsão do exame de ordem. Desse modo, tenho a impressão que a OAB, na defesa da sociedade, tem o direito, sim, de fazer a seleção dos pretensos candidatos ao exercício da advocacia. A disseminação dos cursos de direito pelo país nivelou por baixo a qualidade dos cursos oferecidos, principalmente por instituições que não dispõem de nenhum histórico”.

Para Licínio Barbosa, do mesmo modo que o Poder Judiciário tem o direito de selecionar, por meio de concurso, o seu quadro, tanto no campo da magistratura como no do Ministério Público, não há nenhum inconveniente em a OAB selecionar os profissionais que irão compor o quadro de advogados do país. “Trata-se de uma seleção, dentro do que é estipulado pela Comissão do exame de ordem, dos candidatos que têm condições de exercer a profissão”, diz. O jurista destaca que é um critério importante, que ressalva a sociedade de danos eventuais por profissionais não capacitados. “Na verdade, é preciso que a OAB exerça esse poder classificatório para minimizar problemas junto à própria sociedade.”

Licínio Barbosa diz que no Brasil há muita democracia na atuação dos advogados, desde que inscritos na OAB, por meio do exame de ordem. Ele exemplifica com o modo como se dá a escalada na carreira dos advogados em alguns países da Europa: “Lá, existe uma gradação para efeito de postulação para o exercício da advocacia. Os advogados recém-formados só podem atuar em instâncias de primeiro grau. Só, posteriormente, à medida que vão ganhado maior consistência é que passam a advogar nos tribunais se segundo grau. E assim, sucessivamente. Logo, apenas um pequeno número de advogados atuam na Corte Suprema. Ou seja, há uma seleção paulatina ao longo do tempo. Não é como no Brasil, onde qualquer advogado inscrito pode postular qualquer instância, inclusive o Supremo Tribunal de Justiça.

Sobre a tese de indenização, acrescentada pelo juiz Carlos Humberto de Sousa na decisão de 22 de janeiro, o jurista diz, ironicamente, que abre precedentes para uma outra tese: a de indenizar os candidatos não aprovados para a magistratura e Ministério Público. Para Licínio Barbosa, a OAB, em suas seccionais, ainda não está tão rigorosa como deveria ser. “Para efeito de garantia da qualidade dos profissionais”.

O promotor Tito Souza do Amaral concorda com a decisão do juiz Carlos Humberto de Sousa. Para Tito Amaral, a decisão está “absolutamente correta”, tendo em vista que qualquer profissão pode ser exercida regularmente, desde que cumprido o curso de graduação que habilita o profissional à atividade específica. “Portanto, embora exista o estatuto da OAB, que exige o exame de ordem para que o interessado em exercer a advocacia tenha seu registro efetivado, trata-se de uma exigência inconstitucional.”

O promotor é categórico: “Todo curso superior habilita o profissional a exercer uma profissão. À entidade de classe cabe apenas a fiscalização do exercício profissional”. Tito Amaral, que também é professor de direito constitucional da Universidade Paulista, lembra que se há queixas contra os cursos ministrados por algumas instituições, compete empreender ações questionando a qualidade do ensino. “Se o ensino é deficiente, cabe ao Ministério da Educação, por meio dos métodos apropriados, verificar o desempenho desses cursos”, argumenta.

No dia em que foi ouvido pela reportagem, o promotor havia recebido a agradável notícia de que um de seus filhos havia sido aprovado no vestibular da Universidade Federal de Goiás, para o curso de direito. E, como exemplo de sua posição sobre o tema, antecipa que, quando seu filho se formar, vai orientá-lo a entrar com uma ação semelhante a dos bacharéis formados pela Universidade de Mogi das Cruzes, requerendo o direito de exercer a advocacia sem se submeter ao exame da OAB.

O que diz o magistrado

Confira, na íntegra (ressalvados a abertura e o fecho de praxe), a tese do juiz federal Carlos Humberto de Sousa — fundamento de sua liminar em favor de dois bacharéis em direito que pleiteiam ingresso na OAB sem passar pelo exame de ordem.

Peço venia às partes para desenvolver uma tese que tenho sobre esse assunto. Em primeiro lugar, é de se ter presente que, dentro do lapso de tempo que vai do vestibular até a colação de grau, é a universidade quem gerencia a vida do estudante, do mesmo modo que o órgão fiscalizador cuida da inscrição do profissional no seu respectivo quadro e, daí em diante, é este quem gerencia o exercício da sua profissão.

A conseqüência da separação desses lapsos de tempo está em que a universidade não interfere no órgão profissional, assim como este não interfere naquela. Há uma convivência pacífica, harmônica e localizada, ou seja, cada qual exercendo as tarefas que lhes são pertinentes, dentro de suas respectivas competências.

Outro detalhe importantíssimo: o órgão de fiscalização profissional pode interferir na vida do cidadão após a sua inscrição nos seus quadros. Essa interferência, se ocorrente antes da inscrição, caracteriza, sem dúvida, uma ilegalidade, passível de correção pelo Judiciário.

Também não se pode olvidar que as universidades, incluindo-se aí as faculdades, têm assegurado em seu favor uma autonomia didático-científica, conforme se vê no art. 207, da Constituição Federal de 1988.

Nesse contexto, ao diplomar o aluno, a universidade está reconhecendo que o mesmo encontra-se preparado para o exercício profissional ao qual se habilitou.

Conseqüentemente, o órgão de fiscalização profissional não tem competência ou poderes para dizer, antes da admissão no seu quadro, se esse ou aquele profissional tem ou não preparo suficiente para o exercício da profissão, pois isto significa permitir-lhe uma indevida invasão na autonomia didático-científica mencionada.

Pois bem, os diplomas de bacharel em direito conferem aos impetrantes o direito de exercerem a profissão de advogado, como pretendem.

É bem verdade que as universidades não formam advogados, mesmo porque o curso de direito tem, legalmente, a característica única de capacitar o bacharel em direito ao exercício de diversas outras profissões: juiz, promotor, delegado, consultor de empresas, professor universitário, procurador autárquico, assistente jurídico etc...

Do mesmo modo, é certo que nenhuma dessas profissões questiona o passado do profissional e se ele fez ou não o exame de ordem.

A única exceção à regra é a OAB, que insiste em questionar a formação profissional dos bacharéis em direito que pretendem seguir o exercício da advocacia, mesmo sem ter competência constitucional para tanto.

O curso de direito não cria distinção alguma quanto ao caminho profissional que pretende seguir o profissional, sendo este livre para seguir a sua escolha e convicção. Eventuais distinções infraconstitucionais são, por óbvio, inconstitucionais.

A outorga de grau no curso de direito é pública e solene, normalmente com a participação de membros da OAB, conferindo ao bacharel, mediante juramento, o direito de exercer as mais diversas profissões no campo das ciências jurídicas, notadamente a advocacia.

A competência atraída à OAB, de “selecionar” os advogados (Art. 44, II, da Lei 8.906/94), é inconstitucional, porque simplesmente anula a autonomia didático-científica das universidades para formarem profissionais (Art. 207, CF/88).

Nessa linha de raciocínio, a outorga de grau de bacharel em direito, deferida aos autores, ato jurídico perfeito e acabado, restaria por caracterizar uma inverdade, o que certamente não se coaduna com a pretensão do legislador constituinte.

Pela mesma razão é flagrantemente inconstitucional a competência prevista no Art. 58, VI, da Lei 8.906/94.

Lembro que uma lei ordinária federal (o Estatuto da OAB) não pode, em face do princípio da hierarquia das normas jurídicas, revogar ou mesmo dispor contrariamente à autonomia didático-científica conferida pela Carta Magna às universidades.

Veja-se o paradoxo: a recusa à inscrição dos autores tem feições inegáveis de uma punição, enquanto que o poder disciplinar (aí incluindo-se a punição) da OAB só se dirige aos nela inscritos (Art. 70, Estatuto da OAB).

A inconstitucionalidade reside, dentre outros pontos, justamente nesse: pune aquele que não foi inscrito nos seus quadros.

Isso também é ilegal.

Penso, data venia, que essa seleção prévia, a pretexto de admitir somente os “qualificados”, ainda que sob a pretensão de propiciar à sociedade um serviço de qualidade, deixa transparecer um indisfarçável controle da concorrência profissional.

Esse controle, a par da ilegalidade, constitui, no meu entendimento, sem ofensa a quem quer que seja, um procedimento que contraria a ética.

Não se venha argumentar que o aluno sai da faculdade incompleto, ou seja, sem o conhecimento amplo necessário ao exercício profissional. Esse argumento é ilegal, porquanto se o ensino superior está ou não deficiente, isto não é problema dos conselhos profissionais, seja qual for a área de formação do aluno. Isto é problema do Ministério da Educação, que tem a competência de fiscalizar o ensino superior.

Se a faculdade não está ensinando como devia, então que se provoque o MEC e, se não restar alternativa, que se feche a faculdade, mas o que não se admite é a intervenção dos conselhos profissionais na avaliação prévia da qualidade do profissional, para, ao depois, inscrevê-lo ou não.

Por último, ouso defender a tese de que, se a OAB está impedindo o registro profissional de um estudante que regularmente submeteu-se à universidade, recebendo de quem de direito, legalmente, a outorga do respectivo grau acadêmico, deve suportar, por óbvio, uma indenização, por dano material e moral, examinando-se caso a caso.

É algo a se pensar.

Goiânia, 22 de janeiro de 2003.

Carlos Humberto de Sousa
Juiz Federal