Vital Moreira
(Diário Económico, 10 de Outubro de 2007)
O projecto de lei-quadro das ordens profissionais, pendente
de aprovação no parlamento, é uma iniciativa necessária e oportuna, por três
razões. Primeiro, é urgente introduzir alguma racionalidade na criação a esmo
de novas ordens profissionais (há mais de uma dúzia de profissões que também
querem a sua ordem). Segundo, é conveniente estabelecer um conjunto de regras
comuns básicas sobre a organização, o governo e o funcionamento das ordens
profissionais. Terceiro, é imprescindível definir de uma vez por todas as
atribuições das ordens na regulação do acesso à profissão, pondo termo a abusos
que não podem continuar.
No que respeita
à criação de novas instituições, o projecto de lei
define as características das profissões susceptíveis de serem organizadas em
ordens e exige a justificação da sua criação por meio de um estudo
independente. É de esperar que estes mecanismos corrijam o casuísmo com que têm
sido propostas e criadas várias ordens profissionais.
No que se refere
à organização e regime jurídico das ordens profissionais, a lei-quadro introduz
diversas inovações dignas de relevo, designadamente a democracia
representativa, acabando com a actual ficção das assembleias gerais; a limitação dos mandatos dos
dirigentes; um conselho de supervisão independente, com funções de fiscalização
e funções disciplinares; um provedor dos utentes,
embora facultativo; um procedimento específico de fixação das quotas e a
cobrança fiscal destas; exigências de "accountability"
e transparência no governo das ordens.
Quanto ao acesso
à profissão, o projecto visa acima de tudo garantir a
liberdade de profissão, sem prejuízo dos requisitos legalmente estabelecidos e
dos procedimentos que a lei atribua às ordens profissionais.
Neste ponto
causou algum nervosismo a notícia (infundada), segundo
a qual doravante bastaria o curso superior sem mais para o exercício da
respectiva profissão, todos tendo direito de inscrição nas ordens profissionais
respectivas. Não é bem assim, obviamente. A lei só proíbe os exames à entrada da própria
ordem, para controlar o saber dos candidatos, mas não proíbe nem a exigência de estágios
profissionais e de conhecimentos deontológicos nem a
existência de exames de estágio ou de aferição do saber em matéria deontológica, desde que estes requisitos não sejam
desproporcionados (por exemplo, longa duração dos estágios e excessiva
exigência nas provas de avaliação).
O que se pretende é que as ordens não possam
contestar, sem mais, o grau académico dos candidatos, mas não se impede que
avaliem o que elas próprias ensinam (normas deontológicas),
bem como o aproveitamento do estágio profissional por elas exigido. Ou seja, as
ordens podem ministrar formação adicional específica para o exercício da
profissão e no final podem proceder à avaliação do aproveitamento. O que não podem é fazer exames à entrada na ordem
sobre os conhecimentos académicos dos candidatos,
porque sobre isso eles já estão oficialmente certificados pelo diploma que
obtiveram nas universidades.
Algumas ordens
profissionais já manifestaram a sua discordância com alguns aspectos da
lei-quadro. Mas é evidente que uma lei que visa estabelecer mais democraticidade interna, mais transparência na gestão,
menos corporativismo e menos restrição à liberdade de profissão e à
concorrência, tem de encontrar objecções por parte
dos que consideram as ordens como uma espécie de sindicato profissional público
ou grupo de interesses oficial. Estão no seu direito, mas não podem pretender
impor a sua vontade ao legislador.
Seguramente que
o projecto poderia ser mais ousado e ambicioso.
Assim, por exemplo, poderia avançar-se para o reconhecimento de autonomia
estatutária às ordens, dentro dos limites da lei-quadro, em vez de continuar a
ser o Governo a aprovar os estatutos por meio de decreto-lei.
Do mesmo modo, a
figura do provedor do utente deveria ser obrigatória,
e não facultativa. Ao contrário do que já vi defender, as ordens raramente têm
em linha de consideração os interesses dos utentes mas apenas os dos profissionais que elas representam. A
figura do provedor pode ser um decisivo passo em frente para internalizar na
gestão das ordens os interesses dos utentes dos
serviços profissionais.
Por último, não
parece muito razoável aplicar esta lei somente às ordens que venham a ser
constituídas, deixando de lado as que já existem, criando assim um
"dualismo normativo" para o mesmo tipo de instituições. Melhor
solução seria dar às ordens existentes um prazo relativamente longo para
adaptarem os seus estatutos à lei (ou proporem ao Governo a sua modificação).