A degradação das Ordens
JOÃO
CÉSAR DAS NEVES
17-Dez-2007
http://www.inverbis.net/opiniao/degradacao-das-ordens.html
As
recentes eleições para bastonário de várias Ordens
profissionais manifestaram
uma enorme perversão funcional. Mas a candura com que as coisas foram feitas e
ditas mostra como até os principais responsáveis não se dão conta da sua
degradação.
Um
direito fundamental numa sociedade moderna é a liberdade de associação, podendo
cada um criar os agrupamentos que quiser para defender o que achar conveniente.
Mas as Ordens profissionais não são agremiações dessas. Trata-se de
instituições de Direito Público, não de Direito Privado. Só por isso é que elas
têm poderes estatais a que nenhuma associação de cidadãos pode aspirar, como o
de conceder ou retirar o direito de alguém exercer um ofício particular. O
motivo é fácil de entender.
Em
certas actividades, o profissional exerce um poder
muito forte sobre os clientes. O caso típico é o médico, que tem nas mãos a
vida e a saúde do doente. Nesses casos o público precisa de se proteger dos
eventuais abusos que esses especialistas possam cometer na sua acção. O problema é que só um colega do mesmo ofício
consegue julgar tais abusos. Apenas um médico sabe dizer se, num acto particular, existiu maldade ou boa prática clínica.
Para
resolver a questão muitos países entregaram a regulação desse tipo de actividades mais sensíveis às Ordens, constituídas pelo
universo dos respectivos profissionais. Por isso elas só devem existir nos
casos em que se joga um interesse público fundamental. As verdadeiras Ordens
tratam apenas de valores como a saúde (Ordens dos médicos, enfermeiros,
farmacêuticos, dentistas e veterinários), justiça (advogados), infra-estruturas
(engenheiros e arquitectos), contas empresariais
(Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e Ordem dos Revisores Oficiais de
Contas), etc.
O
aspecto mais importante desse tipo de instituição é que ele só pode ter como objectivo não defender os interesses dos profissionais, mas
defender o público dos abusos desses profissionais. O facto
de ser regido pelo Direito Público é isso mesmo que quer dizer. Trata-se, no
fundo, de uma espécie de secretaria de Estado ou direcção-geral
que, nesse campo concreto, se ocupa, como todas, do bem comum. Por isso tem o
poder de certificar os profissionais e de julgar a sua prática pelas comissões deontológicas. Tudo isto são funções que naturalmente
caberiam ao Estado mas, como ele se sente incompetente nessa tarefa particular,
entrega-as a quem sabe, os membros dessa actividade.
Aqui
surge uma das circunstâncias mais difíceis da natureza humana, a de "juiz
em causa própria". Como a profissão se auto-regula, a tentação de
transformar a Ordem numa corporação de interesses é enorme. Em alguns casos
tenta-se resolver a questão criando duas instituições diferentes para a mesma actividade. Se as Ordens dos Médicos e Farmacêuticos são de
Direito Público, os Sindicatos dos Médicos e a Associação Nacional de Farmácias
são de Direito Privado e podem, com toda a legitimidade, defender os interesses
da respectiva classe. Outro argumento muito utilizado é dizer que ao proteger
os interesses dos profissionais se protege o público, porque eles só existem
para servir as populações.
As
recentes eleições para bastonário, como de costume,
nem se deram ao trabalho de tais expedientes e eufemismos. As propostas e
retóricas eleitorais foram concebidas, descaradamente,
como se estivesse em causa apenas a defesa dos interesses dos que votam. Para
todos os envolvidos - candidatos, eleitores, comunicação social e até o público
tratava-se de um problema particular daquele sector, decidido pelos membros
desse sector.
Aliás
é visão comum que a classificação de "Ordem" é mero
título honorífico de respeito por certas actividades.
As subtilezas legais são esquecidas, e ninguém parece interessado