A anistia
no conceito de Ruy Barbosa
16.11.2008
JORGE WILSON
ARBAGE
O presidente
Luiz Inácio Lula da Silva tem reiterado, em entrevista à mídia, que a polêmica
em torno da Lei de Anistia seja sepultada para sempre. Assim não pensam alguns
poucos de seus ministros, que persistem na idéia de mantê-la como chama acesa
no espírito da opinião pública, sob o pretexto de que os torturadores ficaram
excluídos do benefício.
Para certas
pessoas da sociedade, em todos os tempos, vícios maléficos como o ódio, o
perjúrio e o revanchismo são trunfos imprescritíveis. Juro, com a mão sobre a
Bíblia, que esse contingente humano parece não ter o menor apreço à oração que
Jesus, o Filho de Deus, nos ensinou, na estrofe do Pai Nosso, que diz: 'perdoai
as nossas ofensas, assim como perdoamos os que nos têm ofendido'. Pedem o
perdão do Senhor, mas não perdoam o irmão que o tenha ofendido.
No final da
década de 1970, o país enfrentava um clima de muita apreensão. Era o início do
governo João Figueiredo, ungido pela graça da extinção do AI-5 e o prenúncio da
abertura democrática, herança do final do governo Enesto
Gaisel. Como remédio heróico para consolidar a
pacificação nacional, do Palácio do Planalto fluiu o Projeto Anistia. Debates
acalorados agitaram as tribunas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Opiniões favoráveis e contrárias dominavam as páginas da mídia escrita, falada
e televisada. Finalmente, o Congresso Nacional aprovou e o presidente da
República sancionou a Lei Federal nº 6.683, de 28 de
agosto de 1979, que concede a anistia e dá outras providências.
O vocábulo
'anistia' (ou 'amnistia', escrita etimológica) deriva
da raiz grega MN, memória, e da partícula 'a', o alfa privativo helênico,
significando, assim, 'apagamento da memória'. Anistiar é apagar, cortar, suprimir
algo do mundo e do mundo jurídico. É o 'oblivio' dos
romanos. A Lex oblivionis
era a lei do esquecimento. Pela anistia é votado ao esquecimento o ato
criminoso, bem como seus efeitos penais e civis.
É conveniente
ressaltar que o instituto jurídico da anistia está consagrado nos textos das
constituições da República. A competência de concedê-la pertence à União
(artigo 21, XVIII e artigo 48 VIII da Carta Cidadã de 1988).
O que significa
o vocábulo 'União'? Congresso Nacional com sanção do presidente da República.
Em assim sendo, a 'anistia' concretiza-se por ato administrativo complexo do
qual participam órgão colegiado – o Congresso Nacional e o presidente da
República.
No tempo do
Império, o monarca, no uso do Poder Moderador – chave de toda a organização
política (artigo 98, da Carta Política de 1984), podia conceder a anistia em
caso urgente 'e que assim aconselhassem a humanidade e bem do Estado (artigo
101, inciso 9º da Constituição de 1824). A anistia era ato discricionário e
político do chefe do Poder Executivo por imperativo constitucional. Depois, em
1981 e em 1925-1926, artigo 34, inciso XXVI, competia ao Congresso Nacional,
sem sanção do presidente da República, a concessão da anistia. Por necessidade
de relembrar episódio de natureza histórica, retroajo ao final do século
dezoito, isto é, ao ano de 1985, e cito o caso da anistia dos rebeldes
'federalistas', os quais eram remanescentes da Revolta da Esquadra.
Encarregou-se de
solicitá-la o próprio negociador da paz, general Inocêncio Galvão de Queiroz.
Conta Rodrigo Otávio, então secretário da Presidência, que Prudente de Morais
'muito se interessou pela decretação da anistia e pela atenuação das restrições
com que a Câmara dos Deputados insistia em desnaturar'. O Senado a concedia sem
nenhuma dessas restrições. Mas foi afinal com elas que se anistiaram os
participantes das lutas civis que tanto ensangüentaram a primeira fase do
regime republicano.
Curioso é que o
caráter 'pleno e conciliatório' de tal anistia mereceu a adjetivação pomposa do
apreciado autor de o Rei do Brasil, Ruy Barbosa, que lhe irrogou
a pecha de 'anistia inversa, anistia expiatória'. E mais, desde os debates em
torno da matéria no Senado, Ruy Barbosa, o jurista das instituições
federativas, o jovem decano do Direito Constitucional Brasileiro, tinha
estigmatizado as restrições contraditórias contidas no projeto por fim
sancionado.
Na verdade, o
conceito jurídico de anistia é consenso pacífico na interpretação dos mais
renomados jurisconsultos brasileiros. No elenco dos nossos valorosos mestres da
Ciência do Direito Constitucional, há de se dar destaque genial a Ruy Barbosa,
que assim a definiu em sessão de 24 de agosto de 1985. 'A anistia, na opinião
dos jurisconsultos, cancela o delito, vai extingui-lo na sua fonte, faz desaparecer
a sua idéia, é o esquecimento pleno, é o profundo silêncio decretado pelos
poderes do país sobre os fatos, cuja memória é de interesse do governo que
desapareça'.
É bom ressaltar
que Ruy emite uma opinião no caso de anistia 'sem restrições', em cujo modelo
se encaixa a lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.
Já com relação à
do decreto legislativo que tomou o nº 310 e foi
sancionado no dia 21 de outubro de 1985 e sobre as 'restrições nele contidas',
faz esta ressalva: 'As restrições, pelo contrário, opondo-se substancialmente
ao espírito dessa medida, renovam a memória dos fatos, entretêm um elemento
agitador e privam a anistia do seu caráter bemfazejo'
(Rui Barbosa, comentários à Constituição Federal Brasileira, Vol. VI página
231; Obras Completas, Vol. XXII, Tomo 1, página 32).
Há um ponto a
destacar pela relevância jurídica que o envolve, a saber: em nada obstante o
precedente jurisprudencial firmado na questão anterior das reformas e demissões
compulsórias decretadas pelo governo com aprovação do Congresso,
precedente que parecia tornar definitivamente assentada a tese (cujo
precursor, entre nós, fora Ruy) no reexame judicial da constitucionalidade de
qualquer ato do Executivo ou do Legislativo, ofensivo de franquias individuais
– em que pese a esse aresto famoso, o Supremo Tribunal Federal entendeu, desta
vez, 'que não tinha competência para cancelar as restrições votadas pelo
Congresso na anistia submetida a seu juízo, porque isso equivalia a sobrepor-se
ao poder soberano para anistiar'.
Como se vê, não
parece fácil, como imaginam certos setores do atual governo da República,
alterar o 'status quo' da lei de anistia para
alcançar o reexame dos seus efeitos. Estava certo o presidente João Figueiredo
ao sancionar a lei nº 6.683, de 1979, vetando os vocábulos
'e outros diplomas legais'. Neles, figuravam as
restrições almejadas pelos liderados do saudoso deputado Ulysses Guimarães.
De outro lado,
há de ser considerada e respeitada a intenção do legislador, no caso o chefe do
Poder Executivo, que, decorridos dez anos do aniversário da anistia, escreveu
uma carta, endereçada a mim, da qual reproduzo este trecho do seu pensamento:
'Lutei muito por isso. E, se o fiz, foi na certeza de que estava praticando um
ato democrático que resultaria na pacificação nacional'.
Para concluir: é profundamente lamentável que
fluidos maléficos vindos das lutas sanguinárias de 1985 de políticos raivosos,
homens conturbados pela paixão de facções, gente infeccionada pelo vírus
partidário, encontrem abrigo na alma e no coração de poucos brasileiros que se insurgem contra os benefícios da lei de anistia brotada em
agosto de 1979.Que Deus tenha piedade desses pobres de espírito!