Neuroética,
“neurodireito” e os limites da neurociência
Atahualpa FernandezÓ
Manuella Maria FernandezÓ
“Aqueles que supõem que
ciência e humanismo estão divorciados tendem a ver as novas teorias
neurobiológico-psicológicas como uma irreparável perda de nossa humanidade. Mas
também se pode ver de outra forma.(...)Pode ser de um profundo aumento na
compreensão de nós mesmos, o qual contribuirá a aumentar em vez de diminuir
nossa humanidade. Em qualquer caso, é um erro mirar a ciência como proposta em
oposição ao humanismo”.
P.
CHURCHLAND
Estão os cientistas criando um mundo ambicioso que resultará
na imposição de uma revolução lenta, silenciosa, destrutiva e subversiva dos
“valores humanos” até agora ancorados na tradição? Avizinha-se uma nova forma
de pensar e entender a conduta humana? Que códigos possuem o cérebro que
modelam a ética, a responsabilidade pessoal, os vínculos sociais relacionais,
as transações sociais, econômicas e jurídicas, e até mesmo a “arte” de
interpretar? Donde se encontram no cérebro as emoções sociais, o
livre-arbítrio, os juízos e os raciocínios morais? Que tem que ver a neurociência
com o Direito e a jurisprudência?
Os
estudos da natureza da mente e do funcionamento do cérebro começam a chegar à
filosofia moral e ao direito de uma maneira cada vez mais contundente; de forma
direta ou indireta, não param de lançar novas luzes sobre questões antigas
acerca da racionalidade humana, da moralidade, do bem e do mal, do justo e do
injusto, do livre-arbítrio, da "rule of law" e das relações entre os indivíduos. A cada
dia que passa sucedem-se novas tecnologias e investigações para obtenção de
imagens detalhadas do cérebro em funcionamento.
De
fato, graças às investigações levadas a cabo pela neurociência, o desenho do
cérebro que está aparecendo aponta já algumas pistas dignas de menção. Em
primeiro lugar, a confirmação daquelas hipóteses lançadas por Crick e Koch
(1990) acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que
se encontram situados em lugares distintos do córtex cerebral. Já sabemos,
entre muitas outras coisas, que na tarefa de realização de juízos morais (assim
como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão
fronto-límbica (Damasio, 1994; Adolphs et al, 1998; Greene et al., 2001 e 2002;
Moll et al., 2002 e 2003; Goodenough & Prehn, 2005; Hauser, 2006). Sabemos
que a percepção estética implica a ativação do córtex pré-frontal dorsolateral
esquerdo (Cela-Conde et al. 2004) e que a capacidade para apreciar a beleza
difere entre homens e mulheres pelo que se refere ao cérebro – isto é, que
quando as mulheres avaliam diferentes estímulos em relação à beleza dos mesmos,
se ativam regiões no lobo parietal dos dois hemisférios cerebrais, enquanto que
no caso dos homens essa ativação se dá preferentemente no hemisfério direito
(Cela-Conde et al, 2009). Sabemos como se realiza o processamento das cores a
partir dos centros visuais primários do córtex occipital (Zeki & Marini,
1998; Bartels & Zeki, 1999), assim como a ativação neuronal relacionada com
a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett,
Bandettini & Ungerleider, 2004).
Também
sabemos dos “neurônios espelho” que, longe de ser uma mera curiosidade, parecem
ser muito importantes para compreender a maioria dos aspectos da natureza
humana, como a avaliação dos atos e intenções dos demais decorrente de nossa
capacidade de elaborar uma “teoria da mente” (ou para “simular” estados
mentais), para comunicar nossas intenções e sentimentos e para compreender e
prever o comportamento, as intenções e sentimentos de nossos congêneres
(Rizzolatti et al., 2001 e 2006; Ramanchandran, 2008; Iacoboni, 2009; Damasio
2010; Gazzaniga, 2010). Em termos gerais, vai aparecendo um panorama em que o
córtex pré-frontal joga um papel de primeira ordem respeito do que são os
processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já
sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos
paleoantropólogos (Deacon, 1996 e 1997).
No
que chamamos caracterização neurobiológica de nossa concepção moral, os
neurocientistas intentam fazer visíveis aspectos da condição humana mediante
procedimentos de imagens cerebrais que permitam retratar, por assim dizer, o
pensamento, os estados emocionais, os correlatos de ativação neuronal que se
produzem quando o sujeito pensa ou formula juízos morais..., dando já por assentado que os fenômenos ou processos
mentais relacionados com nossas condutas e/ou juízos morais são propriedades
emergentes da atividade cerebral. Também há algo de óbvio e de extremamente
positivo que se pode inferir de todos esses progressos neurocientíficos: a
constatação de que a mente é um estado funcional do cérebro, de que tudo o que
passa na mente (a atividade mental) se deve a (ou ao menos depende da)
atividade do cérebro; isto é, de que toda nossa atividade mental (da percepção
à consciência) não é mais que uma dimensão particularmente sofisticada da vida
biológica.
Nomeadamente
com relação ao direito, tudo indica que a investigação neurocientífica sobre a
cognição moral e jurídica poderá vir, de certa forma, a revolucionar nosso
entendimento acerca da natureza do pensamento e da conduta humana, com
consequências profundas no que se refere, por exemplo, ao domínio próprio da
“racionalidade” jurídica e do atual modelo (ontológico e metodológico) do
fenômeno jurídico. Por exemplo, os novos conhecimentos parecem dispor dos
elementos necessários para poder influir nas intuições morais da sociedade e
nas obrigações percebidas, estimulados pela utilização das técnicas de imagem
cerebral para investigar os correlatos neuronais de certos comportamentos, como
o livre-arbítrio, a culpabilidade, a responsabilidade pessoal, a tomada de
decisões morais e jurídicas, etc.[1]
O
grau em que isso seja possível e o calibre das resistências que encontrará é
algo cuja resposta nos chegará quiçá antes do que possamos prever. E como não
parece haver uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no
âmbito do científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro, a união
destes dois elementos representa, seguramente, uma combinação naturalmente
fascinante e estimulante, uma vez que tanto a norma jurídica (sua elaboração, interpretação
e aplicação) como o comportamento que procura regular são, depois de tudo, produtos
da atividade cerebral.
Apesar
de tudo isso, parece igualmente importante que se tenha o devido cuidado à hora
de avaliar as incessantes promessas que se sucedem nos noticiários acerca das
novas descobertas neurocientíficas: novas substâncias moduladoras da atividade
cerebral, novas promessas de aniquilação de flagelos antigos como a depressão,
a obsidade, a infelicidade, a perda de memória, novas concepções sobre a
liberdade, a responsabilidade pessoal, os juízos morais, etc. Todas essas promessas
gritam desde as portadas
sensacionalistas de livros, revistas, blogs, jornais, etc., todos “inspirados”
nos mais recentes resultados procedentes das investigações detalhadas do
cérebro em funcionamento – já há, inclusive, autores que falam de uma nova área
de conhecimento: o “neurodireito”.
É
que embora a “neurocultura” esteja, definitivamente, de moda, parece razoável evitar
a simplória assunção de que o cérebro (ou os genes) prescreve e determina a
conduta e o pensamento humano em toda a sua dimensão. É bastante provável que a coisa não funcione de
forma tão simples assim. Da mesma forma como a religião condena aos humanos a
uma minoria de idade permanente, assim também pensar que a relação
cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que, a esta altura da
história, a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o
humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes
e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens e as
influências que nos brindam o meio físico e social.
Convém
atuar com muita cautela quando um salto técnico assim permite levar a cabo
análises e detecções impossíveis com anterioridade. E em que pese o fato de que
os procedimentos atuais de neuroimagem funcional se limitam a detectar câmbios
na atividade neuronal ou na circulação sanguínea cerebral, não resulta difícil
deixar-se levar pela euforia, sacando conclusões precipitadas e/ou exageradas.
Mas o certo é que a atual investigação neurobiológica de nossas condutas, de nossos
juízos morais, de nosso conhecimento do bem e do mal, apresenta importantes
limitações.
Por
exemplo, a descrição de determinados centros de atividade e a atribuição a
essas áreas de determinadas funções ou atividades apenas nos ajuda, uma vez que
o fato de que tudo suceda em um lugar determinado do cérebro não explica nada.
Os métodos atuais não dizem nada acerca de “como” funciona, pois simplesmente
medem e, de maneira indireta, sinalizam donde há uma maior necessidade
energética entre centenas de milhares de neurônios. A localização exata no
cérebro, que hoje conhecemos graças às técnicas de imagem cerebral, não explica
como as funções cognitivas e afetivas podem descrever-se por mecanismos
neuronais (Rubia, 2009).
Na
verdade, é um fato que ainda estamos longe de contar com um mapa preciso das
ativações e correlatos neuronais relacionados com nossos comportamentos e/ou
processos cognitivos e emocionais que nos levam a atuar - ou, o que é o mesmo,
que percorremos muito pouco do longo caminho para uma compreensão fundamental
do cérebro. E uma vez que nossa falta de compreensão exata do que faz o cérebro
em seus níveis superiores é vastíssima, é sempre aconselhável considerar que
inclusive nossas mais caras intuições sobre a função do cérebro e a mente são
hipóteses revisáveis e não verdades absolutas transcendentes ou certezas
obtidas introspectivamente. (Churchland, 2006)
Ademais,
o atual esforço mundial realizado sobre as neurociências, potencialmente
louvável, não deixa de gerar alguns problemas porque, como soe ocorrer quando
uma área de trabalho e investigação altera súbita e radicalmente sua face, ao
igual que um campo imantado de fascinação, acaba por provocar um pouco de
desconcerto e desorientação: proliferam novos conceitos, fatos e argumentos a
tal ponto que, de um lado, tornam por momentos difíceis – senão impossível –
manter um panorama global, coerente e bem informado; do outro, tornam fluxos,
débeis e vulneráveis os critérios de avaliação gerais que permitem julgar ditos
conceitos, fatos e argumentos. O resultado de tais inconvenientes pode ver-se,
por exemplo, na desmedida produção de uma massa indigesta de investigações
desconectadas e publicadas em todos os níveis e pelos diferentes discursos
(descritivos e/ou explicativos) que estas acabam por gerar sobre a atividade
mental e o cérebro (Bennett e Hacker, 2005).
Por
outro lado, desde Charles Darwin sabemos que o homem é um produto da história
da evolução por seleção natural. Os momentos biológicos e culturais se
encontram estritamente entrelaçados no processo que conduziu ao ser humano. O
homem é um ser natural e cultural, dotado de uma “natureza cultivada”, para
usar a expressão de Appiah (2010). Quando o homem começou a dar nome e
significado às coisas do mundo em uma linguagem reciprocamente utilizável,
surgiu o pensamento, discurso ou mente. Somente neste terreno é possível
falar-se de normas e proibições. Somente
então se abriu o campo de atuação da comunidade humana no qual os direitos e os
deveres desempenham um papel significativo, quer dizer, somente a partir da
capacidade de dar-se respostas a si mesmo e aos outros que o homem se converteu
em um ser responsável.(Köchy, 2008)
Por
isso não resulta surpreendente e nem mesmo definitivo o fato de que agora, por
meio da neurociência cognitiva, se descubram correlatos e condicionamentos
biológicos da conduta humana e dos juízos morais. A circunstância de que as
concepções de valor, fixadas na moral, são em parte de procedência natural e em
parte de origem convencional, é algo indiscutível. Já Aristóteles o assinalou:
as preferências morais surgem ou por força natural ou contra a natureza. E é
mais próprio da natureza humana assumir estas últimas. Em consequência, não
teorizamos ou filosofamos sobre o direito (ou a moral) para chegar a saber o
que é a justiça ou a virtude, senão para chegar a ser homens virtuosos e
justos, capacidades que surgem da atividade cerebral, cuja estrutura e função
estão diretamente influenciadas por nossa experiência individual e
interpessoal.
Em
todos os experimentos já realizados os cientistas se encontram ante um amálgama
de biologia e cultura, mas os métodos que eles empregam, ademais de limitados,
somente exploram a faceta biológica. Até os procedimentos últimos de
neuroimagem funcional se limitam a detectar câmbios na atividade neuronal ou na
circulação sanguínea cerebral. Para a indagação das influências culturais ou a
aclaração da relevância cultural dos acontecimentos biológicos, não existe, até
o momento, nenhum procedimento científico-natural. Como recorda Dupré (2006), a
mente humana se desenvolve baixo contínuas influências que interatuam desde o
exterior e desde o interior. Ainda resulta muito difícil especificar relações
diretas entre os descobrimentos das neurociências (ou os elementos do genoma) e
os diferentes aspectos da mente . E o intento de fazê-lo pode vir a conformar
um caminho desviado e inútil para a compreensão
da mente humana.
Resulta
ingênuo e precipitado pensar que um conhecimento exaustivo dos correlatos
neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma completa compreensão
acerca da complexidade de todas nossas experiências subjetivas, de nossos
juízos morais, de nossas condutas ou de nossa condição humana. Ainda que algum
dia cheguemos a compreender profundamente nossa natureza, todos os processos
neuronais que subjazem à empatia humana, ao altruísmo, ao egoísmo, ao
conhecimento, à memória, ao aprendizado, ao livre-arbítrio, ao sentido de
justiça ou à responsabilidade moral, continuará intacta nossa “perspectiva
interna”.
Apesar
do intento dos neurocientistas, na busca das raízes biológicas da moral, em
fazer visível a “sede da moral” mediante procedimentos de neuroimagem, quando
nos encontramos diante de um cenário real e submersos em algum dilema moral, os
métodos científico-naturais não bastam por si só para decidir o que é nobre,
bom e justo. Não parece definitivamente razoável supor que a intuição “respecto
de lo que corresponde hacer en un caso imaginário fabricado en laboratórios
proviene del mismo mecanismo (neuronal) que nos impulsaría a actuar en la vida
real” (Appiah, 2010). O correlato neuronal de nossas condutas e intuições
morais é apenas um ponto de partida de nossos compromissos plurais, posto que
os contextos socioculturais e a forma como interagem as relações interpessoais
e o cérebro configuram nossa psique básica de diferentes maneiras em diferentes
épocas e lugares.
Sem
informação complementar procedente das demais áreas das ciências humanas e
sociais seguirá aberto o significado dos mapas, cenários ou imagens cerebrais
obtidos. É um equívoco pensar que há algo de especial e exclusivo nas
neurociências. Os métodos neurocientíficos não bastam por si só para decidir
sobre a natureza de nossa capacidade para construir juízos com os quais
categorizamos a ação e omissão humana como boa ou má, justa ou injusta,
permissível, obrigatória ou proibida (desnecessário dizer que os resultados
obtidos pelas investigações neurocientíficas não se autinterpretam, senão que é
preciso interpretá-los). Também os geneticistas, antropólogos, psicólogos, juristas,
paleontólogos, primatólogos, etc., na medida em que se ocupam da natureza
humana, estão cambiando a concepção que temos do mundo e de nossa própria
natureza.
Pensar
que unicamente os neurobiólogos têm algo mais importante que dizer é um erro
que pode conduzir à graves equívocos. Dito de outro modo, é necessário desenhar
uma imagem de ser humano que se ajuste a uma visão do mundo na qual nossas
intuições e nossos comportamentos não sejam somente produtos da cognição e emoção
que emergem de nosso cérebro, senão também respostas às exigências normativas,
culturais e interpessoais. E isso pela simples razão de que a construção de uma
vida é uma atividade, um logro por meio da qual deveríamos esperar aprender
mais de nossas experiências que dos experimentos neurobiológicos ou
filosóficos.
Sem
as instruções aportadas por outras áreas de conhecimento dedicadas a
proporcionar uma explicação científica acerca das peculiaridades da natureza
humana e as contribuições (em primeira pessoa) aportadas pelos próprios
voluntários participantes nos experimentos (Varela et al., 2001), os dados
obtidos das imagens cerebrais carecem de valor informativo (e principalmente
normativo). Sem uma interpretação interdisciplinar das diferenças nos sinais
obtidos nos registros das ressonâncias magnéticas ou de outro tipo, os
descobrimentos empíricos da investigação cerebral não são outra coisa que
imagens coloridas. Para não lembrar que a revolução provocada pela
neuroplasticidade tem implicações no que se refere aos mapas cerebrais, isto é,
de que estes não são imutáveis dentro de um só cérebro e nem tão pouco
universais, senão que, sendo o cérebro um sistema dinâmico e não-linear, os
“mapas” podem variar constantemente dependendo do que fazemos ao largo de nossas
vidas. Tal como explicou G. Boring: “o mapa de um dia deixaria de ser válido ao
seguinte”[2].
Em
resumo, não há nenhuma dúvida de que os novos desenvolvimentos na área da
neurociência são muito instigantes, extremamente inovadores e em certa medida
distantes ou perturbadores. Com uma condição: que em um terreno tão delicado
como o da investigação neurocientífica haverá de tomá-los em conta com muita
prudência. Na mesma medida, o diálogo que se começa a estabelecer entre
neurocientistas, cientistas cognitivos, filósofos e juristas é ainda mais
estimulante e revolucionário. Pela primeira vez, ouvem-se diálogos consistentes
entre aqueles que estão conduzindo a investigação e os filósofos e operadores
do direito que estão procurando aplicar os resultados dessas investigações em
suas respectivas áreas de conhecimento[3]. A
informação sobre o cérebro e sobre o modo como este funciona não é apenas
meramente interessante, mas antes é e constitui um elemento essencial dos
fundamentos sobre os quais deveríamos basear as nossas decisões individuais,
políticas, morais e jurídicas. O cérebro tem importância porque a nossa
existência tem importância.
Daí
a razão pela qual, uma vez assumida as atuais deficiências e limitações da
investigação neurobiológica, estamos firmemente convencidos de que os novos
conhecimentos neurocientíficos relativos à compreensão da natureza humana
seguramente permitirão uma melhor
compreensão da mente e do cérebro e trarão consigo a promessa de cruciais
aplicações práticas no âmbito da compreensão do fenômeno jurídico, de sua
interpretação e aplicação prático-concreta: constituirão uma oportunidade para
refinar nossos valores e juízos ético-jurídicos, assim como estabelecer o
reinventar novos parâmetros ontológicos e critérios metodológicos a partir da
construção conjunta de alternativas reais e factíveis, devidamente assentadas
sobre cimentos mais firmes e consistentes[4].
Em
outras palavras, os estudos provenientes das neurociências não somente
representam um câmbio na imagem que temos do mundo e de nós mesmos, rebaixando
uma vez mais o orgulho dos juristas que nos fizeram (e ainda nos fazem) crer em
tantas falsidades, como também nos proporcionam uma maneira mais frutífera e
fascinante de cultivar o direito do que essa espécie de filosofia ou dogmática
jurídica “no vazio” em que todos nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos
tempos.
Afinal,
qualquer câmbio em nossa maneira de entender o cérebro afeta por força nossa
concepção da cultura e da natureza humana.
Ó
Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat
de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana /
Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución
humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar
y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT.
Ó Doutoranda em Direito Público (Ciências Criminais)/
Universitat de les Illes Balears-UIB; Doutoranda em Humanidades y Ciencias
Sociales( Evolución y Cognición Humana)/ Universitat de les Illes Balears-UIB ;
Mestre em Evolución y Cognición Humana/ Universitat de les Illes Balears-UIB; Research Scholar, Fachbereich
Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie,
Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main/ Deutschland; Research Scholar do Laboratório de Sistemática Humana/
Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas
Complejos /UIB.
[1] Como
já advertido por Klaus Lüderssen, professor de Direito penal da Universidade
Goethe de Frankfurt, os resultados da investigação cerebral podem ser realmente
dramáticos, já que não só o direito penal se fundamenta na culpabilidade do
sujeito e, portanto, em sua capacidade e responsabilidade na tomada de
decisões, senão que o próprio sistema jurídico como um todo também se veria
afetado. De fato, é esta
distinção entre ato voluntário e ato involuntário, entre mente sana e cérebro
insano, que o debate sobre o impacto das neurociências no direito se
intensifica. Se todos os resultados do
comportamento são eventos puramente físicos e químicos ocorridos no
cérebro – portanto, sujeitos às leis
deterministas de processos neuroelétricos e neuroquímicos e a impossível
influência da vontade – cada ação contrária ao direito teria que ser tratada como um ato involuntário, circunstância
que atentaria contra as próprias bases de nossa sociedade, construída e
fundamentada sobre os princípios da responsabilidade, da imputabilidade, do
pecado e da culpa. (Rubia, 2009)
[2] Nas palavras de Linden (2010): “La localización de una función es sencilla en el caso de los reflejos
básicos subconscientes como, por ejemplo, el acto de vomitar, y es bastante
sencilla en el caso de los estadios iniciales de la sensación (conocemos el
lugar de la corteza al que primero llegan las señales de la visión, del oído,
del olfato y demás sentidos). Pero la localización de una función es mucho más difícil
si se trata de fenómenos más complejos, como la memoria de hechos y
acontecimientos, y es en realidad muy difícil cuando se trata de funciones
superiores, como la toma de decisiones. En algunos casos es complicado porque la
localización de una función en el cerebro no permanece fija en el tiempo: los
recuerdos sobre sucesos pasados parecen almacenarse en el hipocampo y algunas
regiones adyacentes inmediatas durante uno o dos años, pero luego son
exportados a otras ubicaciones en la corteza. La toma de decisiones, en general, es una función tan
amplia y requiere de la convergencia de tanta información que puede ser
descompuesta en tareas más sencillas y distribuida por toda una serie de
lugares situados en la corteza”.
[3] http://www.lawandneuroscienceproject.org/
e http://lawneuro.typepad.com/the-law-and-neuroscience-blog/,
por exemplo.
[4]
Agora, poderão os resultados das investigações neurocientíficas sobre a
natureza humana virem a servir de fonte de informação e/ou renovação dos
postulados tradicionais da filosofia e da ciência do direito? Duvidamos por
três razões. A primeira é que os juristas distam muito de estar preparados para
que os dados científicos guiem suas teorias e práticas jurídicas – em especial
por pressuporem, pelo menos em sua grande maioria, que o ser humano é “tão
especial” que a vida mental humana transcende por completo o conhecimento
científico ou, ao menos, que se acha fora do alcance da neurociência. A segunda
razão pela qual existe resistência à idéia de que a ciência contemporânea afete
ao direito tem que ver com a ameaça percebida à nossa “imaculada” noção de
racionalidade que sem dúvida está vinculada com o problema da interpretação e
aplicação jurídica. A terceira e última reside na aversão dos juristas em
comprometerem-se com a evidência de que as ciências e as humanidades, embora
continuem tendo suas próprias e separadas preocupações, são geradas por meio de
um elemento material comum: o cérebro humano. De nossa parte, contudo,
entendemos que que as consequências dessas investigações neurocientíficas são
de extrema importância para a ciência jurídica. Trazem à baila, em última
instância, questões fundamentais acerca do fato de que a natureza humana não
somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão
que também, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto
institucional e normativo que regula as relações sociais. Sem olvidarmos, claro
está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora
de decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais
morais condicionados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva
(neuronal). Afinal, o ser humano é o único meio através do qual os valores
chegam ao mundo. E é precisamente o
cérebro, como uma “máquina causal” (Churchland, 1989), que nos permite dispor
de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para
viver em sociedade, para interpretar, tomar decisões e solucionar determinados
conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões
filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade. Daí que para compreender “lo que somos y cómo actuamos, debemos comprender el cerebro y su
funcionamiento” (Churchland, 2006).